Deleuze e seus encontros: uma filosofia da experiência [1]
Os conceitos em filosofia devem estar presentes como em um romance
policial de qualidade: eles devem ter uma zona de presença, resolver uma
situação local, estar em relação os ‘dramas’, ser portadores de certa
crueldade. Devem ter uma coerência, mas recebê-la de outro lugar. Samuel
Butler forjou uma bela palavra para designar esses relatos vindos de outro
lugar: EREWHON. Erewhon é, ao
mesmo tempo, o no-where, o lugar nenhum originário, e
o now-here, o aqui-e-agora subvertido, deslocado, disfarçado,
colocado de ponta cabeça.[2]
Introdução
Para Gilles Deleuze a filosofia é “a arte de inventar, de fabricar
conceitos[3]”.
Tais conceitos demandariam personagens conceituais por meio de uma longa cadeia
de amizade; a philia grega que antecede,
etimologicamente, a sabedoria (sophia).
Filosofar seria, portanto, estabelecer encontros conceitos entre amigos; não
amigos entre si mas amigos-da-sabedoria. E é o que Deleuze faz com Espinosa e
Nietzsche; com Bergson e Hume; com Kafka e Proust etc. Uma miríade de encontros
a produzir novas derivas; vertigens, por vezes, considerando certa
antidogmaticidade entre os amigos. Como destaca Machado:
Deleuze tem o sentimento nietzschiano de um niilismo
do pensamento que domina, entre outros setores, a filosofia. Mas,
diferentemente do que acontece com Nietzsche, esse sentimento não é total ou
radical. Assim, ao afirmar que Nietzsche se interessou pouco pela história da
filosofia – como se sua avaliação dos filósofos não fosse inteiramente
justa ou correta -, ele está justificando seu projeto de uma geografia do
pensamento que busca contra-exemplos ou tentativas de escapar do niilismo da
história do pensamento encontrando aliados para Nietzsche, principalmente
Espinosa e Bergson.
Elaborar ou reelaborar uma filosofia da diferença
significa, assim, estabelecer uma ponte, um canal, uma ligação entre
Nietzsche e os que podem, de um modo ou de outro, menos ou mais, ser
aproximados do filósofo da vontade de potência e do eterno retorno. Desse
modo, a filosofia de Deleuze recria e relaciona, pelo procedimento de colagem,
“novos” pensamentos já existentes, dentro e fora da filosofia, sempre com o
objetivo de construir um pensamento que afirma o primado da diferença sobre a
identidade.[4]
A história da filosofia faz-se assim a Deleuze como a história dos bons encontros, daqueles
produtores de “signos[5]”,
entre outros conceitos que esse francês nascido em 1925 em Paris tão bem soube
articular. E para fazer honra a seu amigo, Michel Foucault, o “século XXI será
deleuziano”.
1.
Para iniciar, devemos pensar conceitualmente os encontros, isto é: com
uma filosofia da experiência. É a partir da primeira experiência do encontro conceitual, a saber, entre Hume e Kant, que
Deleuze pode se permitir algumas perguntas: qual é a diferença que une dogmatismo e empirismo? Se ambos nos seus planos
conceituais guardam coerência epistemológica na tradição filosófica, o que
faria reunir a experiência intelectual de cada um? Ou seja, de que maneira a
diferença entre esses dois planos poderiam, num plano conceitual (da
imanência), produzir por meio — não da semelhança — mas da diferença, enquanto
potência para pensar?
A experiência ordinária da leitura dos conceitos empirismo-dogmatismo em
Hume e Kant precisavam, dessa feita, serem dobradas num ponto extra-ordinário. Ou
seja, em algum ponto do intelectualismo kantiano deveria haver uma noção de
sensibilidade que os afetos exclusivos de Hume exigiriam uma compreensão
intelectual; dobrando-se entre si.
Pois para Deleuze devemos buscar na intensividade
dos encontros, justamente no que dista, no que diferencia, aquilo que força o pensamento.
Daí, seria mister pensar Kant com Hume, e vice-versa. Não apenas construir
sistemas lógicos operando, no caso em questão, a moral, entretanto, por meio
dos afetos, sentir a força conceitual
da ética — que se permite: sentir a norma
lógica. Um contrassenso a Hume, vejamos:
Em todo sistema de moral que até hoje
encontrei, sempre notei que o autor segue durante algum tempo o modo comum de
raciocinar, estabelecendo a existência de Deus, ou fazendo observações a
respeito dos assuntos humanos, quando, de repente, surpreendo-me ao ver que, em
vez das cópulas proposicionais usuais, como é e não é, não encontro uma só
proposição que não esteja conectada a outra por um deve ou não deve. Essa
mudança é imperceptível, porém da maior importância. Pois como esse deve ou não
deve expressa uma nova relação ou afirmação, esta precisaria ser notada e
explicada; ao mesmo tempo, seria preciso que se desse uma razão para algo que
parece totalmente inconcebível, ou seja, como essa nova relação pode ser
deduzida de outras inteiramente diferentes[6].
Em outras palavras, para Hume a norma deriva exclusivamente da
experiência. São os fatos a disciplinar o mundo dos valores, e não o contrário.
Somente o bom costume sustenta o bom costume; sem amparo transcendental algum,
sem um dever-ser.
Kant, por sua vez, tem como base para nosso senso do que é bom ou ruim, certo ou
errado, a nossa consciência de que somos agentes livres; valorando em si. E,
porque racionais, e intrinsecamente valorados, é que devemos receber o respeito
apropriado: e toda ideía jurídica de dignidade inalienável da pessoa humana
nasce aqui (direitos fundamentais et al).
Portanto, não
são os fatos caóticos, pois o homem só por sê-lo, deve estar acima deles, como
também dos impulsos e desejos, para montar sistemas morais fundados na sua
razão prática; aquela parte de Deus[7]
residente em nossa consciência. Uma ação, assim sendo, pode ser boa em si
mesma: justamente porque o ser humano, criado por Deus, é bom em si mesmo.
Por isso, Kant
sentira-se despertado de seu sono
dogmático quando Hume irá dizer que as
normas são apenas fatos vindo de costumes, que podem ser mudados conquanto
mudem-se os costumes.
Moral
e Direito são, pois, as duas peças-chave capazes de promover o lugar que
compete à dignidade e ao valor absoluto do homem no mundo moderno.
É
por isso que a moral de Kant é uma moral da razão pura prática, porque é só
pela razão que o homem consegue autarquia e se torna autônomo, porque a razão
prática é o seu “Selbst” mais próprio (“eigentlich Selbst”) e com isso se torna
independente de todas as forças “externas” de mo- tivação. O ser humano é
essencialmente autônomo, não por pertencer a uma determinada comunidade, não
por compartilhar com os outros uma determinada tradição, mas por ser sujeito da
razão incondicional[8].
De que forma Deleuze irá conciliar
inconciliáveis? Como irá extrair uma potência
nova desse econtro que apenas aumenta a distância?
Deleuze tem em mente que Kant e Hume
estão situados no plano da imanência, de modo que cabe-lhe traçar então uma cartografia de orientação das potências
envolvidas. Em suma, intensificar o encontro naquilo que ele pode produzir.
Vejamos.
Se o
projeto kantiano depende da unidade do sujeito, ainda que seja de uma autonomia
ficcional e fantasmática, a experiência, doutro modo, está refém da
contingência e do acaso. Não podemos, pois, nem depender do sujeito quanto à
sua pretensa liberdade tampouco da fortuna para estabelecer sociedades civis
que escapem à barbárie e preservem o direito universal, sem casuísmos.
E com isso, com efeito, Deleuze aposta no
desenvolvimento da ética a partir do plano da imanência, dos encontros, em
oposição à transcendência. Assim, a moral não será principiológica e
transcendental, mas sim de valores
imanentes ao próprio modo de existir mais potente dado nesses encontros. O
princípio deixa de ser ontológico para ser etológico (uma “lógica da
animalidade”):
Tendo isso em vista, os
signos se tornam elementos operatórios indispensáveis na filosofia de Deleuze.
Eles se ligam à imanência de problemas práticos, permitindo-nos apreender não
apenas o estado dos modos num determinado momento, mas também suas acelerações
e desacelerações, o aumento e diminuição de sua potência. Ou seja, instala-se a
prática de uma “etologia” das relações entre os modos. Esta é definida
por Deleuze como o “estudo das relações de velocidade e lentidão, dos poderes
de afetar e de ser afetado que caracterizam cada coisa”. É que, à relação de
movimento e repouso entre partículas correspondentes à essência de cada modo
corresponde também um poder de afetar e de ser afetado. Dito de outro modo, a
etologia busca conhecer, tendo em vista as relações constituintes dos corpos e
suas variações, o limiar mínimo e o limiar máximo de potência de que ele é
capaz, limiares abaixo ou acima dos quais sua relação geral se descaracteriza.
Logo, “a Ética é uma etologia”.[9]
A noção de etologia vem diretamente
de Espinosa[10].
É daí que Deleuze destrava a diferença produtora Kant-Hume, pois
simultaneamente pode traçar racionalmente uma geofilosofia da imanência, uma
política dos bons encontros, sem prescindir do afeto, da experiência. Problemas
da consciência livre transformam-se em signos
da complexidade dos encontros.
2.
Mas o encontro não é apenas
sintomatologia para uma ética. Para uma ciência do direito. Um encontro não
deve se fechar ao regime de normas estebelecidos tampouco compactar os códices
da razão em formas estruturadas de comportamento. A etologia dos melhores, e
mais potentes, encontros remonta a abertura de virtualidades. Embora não
aparentes no dado ela tem o condão de abrir uma fissura quando fundamental;
como um modo de vida novo. Peço licença para uma longa citação:
Os conceitos de atual e
virtual atravessam a obra filosófica de Gilles Deleuze, desde os trabalhos
sobre Henri Bergson até seu último escrito, “A imanência: uma vida...” A
partir desses conceitos, Deleuze elaborará uma ontologia afirmativa na medida
em que haveria entre o virtual e o atual um processo positivo de
diferenciação, ou seja, uma produção da multiplicidade atual a partir da
multiplicidade virtual do ser, que ele passará a designar por plano de
imanência. Ali, o próprio pensamento se constitui como possibilidade de
pensar, sem que haja um eu por trás da ação de pensar, sem que haja a
individuação de um sujeito e de um objeto. Os seres singulares
(multiplicidade atual) seriam fluxos que se recortam do plano de imanência
(multiplicidade virtual), que se conju- gam com outros fluxos, são relações
pré-subjetivas, multiplicidades que devem e só se produzirão como
singularidades como resultado dessas interações de forças. A
vida imanente carrega as singularidades sob o aspecto de virtua- lidades que se
atualizam como coisas. Isto não significa que ao virtual falte realidade, na
medida em que ele é um empenho num processo de atualização, seguindo o plano
que lhe dá sua realidade própria, ele é real sem ser atual. Trata-se,
portanto, de discutir, a partir dos termos centrais dessa ontologia, como se
dá esse processo em que a multiplicidade atual se produz e se destaca do plano
de imanência sem que isso signifique alguma perda ou ganho em termos de
realidade[11].
Sim, os encontros não se abrem para logo fecharem-se nos códigos morais como Kant queria. Os encontros que fogem do território[12] gradeado da ética, pois desterritorializados, são aqueles que produzem multiplicidade a partir de uma contínua diferenciação. Diferenciação de comportamentos logo diferenciação de corpos. Para ficar com Espinosa “não saber o que pode um corpo” é reconhecer um plano virtual de afetividade que desabrocha da singularidade dos devires; daí não podermos falar na rigidez diretiva da norma “sexo” enquanto não pudermos traduzir as múltiplais formas de “sexualidade” — para nos situar com apenas um exemplo caro aos estudos de gênero.
A
sensibilidade que nasce de uma certa linha
do sentir no plano da imanência devidamente cartografado pela mais potente
etologia fissura o dado, gerando assim uma nova intensividade; esse estranho do
contingente que fortalece, a qual Deleuze vai chamar de signo. É o signo
produzido durante o encontro o elemento provocador de um novo modo de afetar e
ser afetado: uma nova forma de expermimentar o sentir, o memorar e o
imaginar. Atualizar virtualidades, esse
é o mote. Agregar organicamente uma nova potencialidade implica produzir um
acontecimento. O elemento fissurado dessa virtualidade “acontecida” é aquilo
que Deleuze empresta de Bergson como “intuição”, aquele componente do vivido
não idealizado. Com os conceitos de espaço e impulso vital, Deleuze irá
substituir o idealismo pela experiência da atualização. Ou seja, atual e
virtual não seriam mônadas isoladas mas comunicávies no plano das relações de
força. E é essa multiplicidade relacional que irá constituir as subjetividades,
daí falarmos em processos de subjetivação, ou ainda, em construção afetiva de
potências criativas. Ao invés de acordos e contratos, composições de força, ao
invés de homens, devires em busca de assinatura[13].
Aqui se conclui que Deleuze realiza uma recolocação da experiência do
pensamento no interior da vida mesma. Uma espécie de geofilosofia ou filosofia
do encontro, sem mapas mas como uma flecha. O presente como Acontecimento
dadivoso, um presente.
Por isso só a
ambiência-vivência nomade irá produzir encontros cada vez mais rizomáticos. Que
seria este devir em que o pensamento se abre como raízes que se misturam na
troca potencial de virtualiades (pois sementes são ordinárias, os frutos desses
encontros, não, dado que são díspares, plurais). Ou seja, os rizomas são trajetórias
para-o-fora dos costumes estabelecidos na história; referem-se ao “porvir” ao
presenteísmo do eterno, ou como diz Deleuze: uma dimensão superior.
Gabriel Leal
[1] Gabriel Leal (autor). Texto alusivo ao seminário do Grupo de Estudos de Filosofia e Formação, EFF-UFMT, em outubro de 2018.
[2] L'ile deserte et autres textes.Textes et entreties
1953-1975,Paris. Minuit, 2002.
[3] Deleuze-Guattari. O que é a filosofia?. Ed 34. P. 10.
[4] Machado, Roberto. Deleuze, a arte e a filosofia. 2
ed. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. 340 p.
[5] “É a noção de signo que sempre me interessou”. Deleuze. In TEORIA DOS
SIGNOS NO PENSAMENTO DE GILLES DELEUZE. Tese de
Roberto Duarte Santana Nascimento, IFCH-UNICAMP.
[6] HUME, David. Tratado da Natureza Humana. Tradução de Débora Danowiski.
Livro III, Parte I, Seção II. São Paulo, Editora UNESP, 2000, p. 509.
[7] Lembre-se, Kant era um protestante pietista fervoroso.
[8] Herrero, Javier F. A
ética de kant. SÍNTESE - REV. DE FILOSOFIA V. 28 N. 90 (2001): 17-36.
[9] Nascimento, Roberto
Duarte. Teoria dos signos no pensamento de Gilles Deleuze. Campinas, SP :
[s.n.], 2012.
[10] O principal passatempo de Espinosa era ver insetos em luta. Espécie de
rinhas de aranhas etc.
[11] FORNAZARI, Sandro Kobol. O Bergsonismo em Gilles
Deleuze. Trans/Form/Ação, São Paulo,
27(2): 31-50, 2004.
[12] Em regra, não existe território,
apenas terriorialização de um “meio” (conceito
de Canguilherm).
[13] Deleuze dirá acerca do conceito de pássaro: “O conceito de um
pássaro não está em seu gênero ou sua espécie, mas, na composição de suas
posturas, de suas cores e seus cantos, alguma coisa de indiscernível que é
menos uma sinestesia do que uma sineidesia”.
Comentários
Postar um comentário