Travessia









A chama fina da lamparina de azeite é açoitada pelo vento poente do Pantanal. Tudo é breu num espelho d'água infinito. Leôncio desperta pigarreando em mais um dia de comitiva na fuga da cheia, atrás de pastos verdejantes para o gado. Um bravo beduíno do Brasil Central, escavado em bravura. Sabe entretanto que hoje não será um pequeno coricho a ser vencido pela boiada, onde servirá sua guampa para o mate, mas o rio mais sombrio da região, largo, escuro e fundo; enlaçado por vitórias-régias. “Deixei quatorze reses ano passado”, memoriava seu Zé cartucheira, ecoando em Leôncio ainda tonto de sono. Ele empertiga na rede puída. Corta o fumo devagar ainda sentado, são três da manhã. Separa a tralha da guaiaca, a chaina e o facão são inspecionados com olhos e narizes colados; chega ver-se difuso, barba limalhada na pele. O fio da lamina espocando elétrons. Cava com as mãos a guampa curtida pelo gasto canivete; chifre de um velho touro, herança de família, uma casta de boiadeiros a qual digna pertencer. Antes de se levantar, assenta o chapéu de palha na cabeça orvalhada, olha o horizonte e procura com um assovio fino seu Soberano. E ele vem, brejeiro como um velho amigo. Com os dedos mansos ele escova o pelo quente do animal preparando o encilhamento, bem mais afaga do que acomoda o basto, a badana e o pelego sucessivamente em camadas, muito mais conversa do que antecipa o baixeiro de lã que estira suave no sentido da escovação com a rédea no ombro e o palheiro caído no beiço fino. Então deita a sela com cuidado no animal dócil. Já se ouve dali o tropel de Manezinho enfileirando as bruacas no carro-de-boi que sai à frente da comitiva, ágil, na procura do melhor acampamento para o quebra-torto, e o almoço-janta; ouve também a formação dos burros dos capatazes e o tilintar do aço. É o cerimonial pantaneiro.

Leôncio ajusta as barrigueiras como um noivo entretendo o espartilho da amada, com paciência, tato e espera; passa o peitoral com perícia, vê então a prata dos metais brilharem nos primeiros raios de luz contra a pele escura do companheiro de jornada, retesa a chincha sem grosseria até que Soberano lhe vira o olhar de compadrio; que o boiadeiro retorna numa boca esgarçada pelo meio-sorrir. Separa o alforge com o mate em boa altura, inspeciona o tambor do .38, seu fumo e algumas pedras de rapadura; enrolado num pano de seda velha um vidro com campari aguarda o festejo da chegada em quatro dias. Encilhado o cavalo, procede ao panorama do estio cavalgando macio, ouvindo a orquestração da curica rouca, do aracuã pardo, do carão fuliginoso e da seriema num contralto espumado. Desmonta breve para ultimar apertos de conferência na calça de couro de terceira viagem, nova portanto, e segue até a comitiva já em prévias de formação seguindo a trilha da fumaça das canecas. O sol, testemunha do rito, vai sendo içado no horizonte por Deus todo-poderoso.

Leôncio é quarta-geração no pantanal mato-grossense. Mais que isso, é ponteiro e chefe de comitiva de mil reses. Antes de partir separa as missões, com Celso na culatra do rebanho com sete capatazes, Olvídio de meeiro, com mais cinco, além do berranteiro, Apolônio, mestre na arte de rebater sons em variados tipos de solos e copas de árvores para que despenque uniforme a toda boiada; nunca para cima e ao vento, como celebrizado por tocadores de televisão; ele dizia com sarcasmo rude. Leôncio, na batuta, vai de ponta com dois homens encimando a boiada. Leopoldino, o mais novo do grupo, aponta na caderneta as reses perdidas para as onças e baixas no caminho por enfermidade; anota currais marchados na palavra para retorno próximo. No seu alforge vai ainda o cruzeiro dos aluguéis e para uma ou outra “precisão”; é o que dizia-me.

Com a boiada na estrada Leôncio pressente o rio depois de três horas de comitiva, à frente está esse Possêidon escuro, o sol levantado de vez às onze horas chega a queimar a púpila do homem; teme perder um cento de animais, o que inviabilizaria sua manutenção na Fazenda Aguaçu; não poder desonrar seu clã é sua angústia mal-baratada pela ausência de repertório, nunca de sentimentos. Avança o passo do Soberano até chegar às margens; o capataz aproxima-se e espraia a vista maravilhado com a imponência das águas, e o Carrossel, seu burro cor de leite, empina faceiro, rememorando aventura. Leôncio oberva pedras soltas de muitos temporais; o rebojo de piranhas no aguardo. Até da suçuarana na espera, da onça parda, da pintadona, a tudo sente cheiros e sons. Soberano ergue a fronte para os dois mil metros de nado, músculos e pulmão em meia-tonelada, homem-animal contra o bravio da natureza.


Iniciam a travessia. Uma grita constante. O estalo de chicotes e o despeito da corrente empurrando os mais fracos para a diagonal. Soberano parte com galhardia os primeiros cem metros. Leôncio no rebote para lá e pra cá, socorre animais de leilão, organiza a formação, toma pela mão os capatazes quase mergulhados; chapéus como viórias-régias. Olvídio dá um grito, num repente agônico, por ajuda no meio da massa branca e informe das reses. Parece um ponto perdido num grande queijo que o devora em baques compassados pelo estrondo de cachoeira que é a boiada na água. Um aperto trava a garganta de Leôncio enquanto ele ruma para o olho do furacão. Soberano é aguerrido no entrechoque com a tropa que avança, duas, três são arrastadas até uma ilha onde Jacarés dão o bote. Leôncio teme o volume de sangue e o cardume das piranhas. O berrante toca a formação na lâmina das águas. O tempo enegrece. Um rumor de ventos derruba o chapéu de palha que docemente segue rio abaixo seguindo o rebojo. As narinas de Soberano ficam limítrofes; arfam agonicamente. Leôncio berra sons animais com o tropel do meeiro aflito. À frente, em boa distância, o primeiro grupo alcança o banco de areia. Soberano sente a necessidade de Leôncio em agarrar o touro Mourão premiado, que soçobra. Leôncio tem a água no peito. Toca o chifre do bicho. Risca sua pele com a unha. Precisa mais de Soberano. Arrasta com ele até pender na lateral do animal submerso em apnéia absurda. Ergue o touro de sua bastardia para o rio. E toma a dianteira lateral até Soberano emergir como um imenso submarino negro, arcaico. Gritos de alegria. O antebraço de Leôncio está em frangalhos. A boiada começa a ganhar calço. Leôncio sorri. É a travessia.

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