A maldição do cargo público


1. 


Estima-se que o número de “concurseiros” no Brasil seja de 12 milhões de pessoas, estrato que se refere, a partir dos anos 2000, aos ditos “profissionais do concurso público”, nada mais nada menos que 10% da população economicamente ativa.

Matéria da ISTO É (ed. 2099), ainda em 2010, apontava um “mercado movimentando algo próximo a R$ 30 bilhões todos os anos no Brasil. Com empresas especializadas em organizar concursos, cursinhos preparatórios, professores particulares, locadores de imóveis dedicados a pessoas que vão para os grandes centros se preparar, empresas de transporte e uma série de prestadores de serviço que, indiretamente, também lucram com os gastos dos candidatos a uma vaga no serviço público.”

O curso de Direito, principal “porta de acesso” ao concurso no Brasil, contava em 2017 com 1200 faculdades contra 1100 do resto do mundo. É consenso geral a panacéia do cargo público, considerando a revitalização do serviço público nos últimos vinte anos, mas sobretudo: o bem-estar que advém da remuneração e da sonhada estabilidade. Arriscaria em dizer que precisaríamos mudar a letra da famosa canção do Skank “quem não sonhou em ser um jogador de futebol” para “quem não sonhou em ser um concursado” (com o prejuízo da melodia, enfim). Principalmente, se esse concursado for membro da alta administração dos poderes, tais como auditores, fiscais, promotores, juízes etc.

Para usar uma hipérbole de efeito: no Brasil, todos estão atrás de uma boquinha no serviço público, se não nele propriamente ao possui-lo (ou seja, “tomando posse”) ou contratando com ele — como ficou observado, na via negativa, pelo desmonte do maior esquema de corrupção da humanidade, a Lava Jato.

Ter um cargo público nesse contexto representa status social além de realização pessoal. No país que exalta os bacharéis — com seus anéis de formatura cafonérrimos — e a cultura do jeitinho, além da legitimidade do sonho conquistado com suor reside a carteirada lacradora e o “sabe com quem você está falando”; daquele “longa manus estatal”, que vem a ser um gozo sem comparação — e pode ser somado inconscientemente também como motivação à motivação justa em servir à sociedade.

Em síntese, o cargo público no início dos anos 2000 primeiro virou fetiche, objeto de desejo aspiradíssimo, e com o advento do colapso da República pós-Dilma, tem se transformado numa maldição. Desenvolvo esse tema no que segue.

2. 

Tudo começa com o apego aos estudos, desde a faculdade, que se desloca do saber, do amor ao conhecimento, para o “X” no lugar correto na prova da CESPE.

O “desejo de saber” dá lugar ao desejo de imitar àqueles que acessaram — com sucesso — ao cargo público. O desejo passa a ser mímese. Isto é, puro exercício de modelagem. A vida universitária, sobretudo nas faculdades de direito e cursinhos preparatórios, deixa o ideal humanista dos grandes luminares — os ruis barbosas, os nelsons hungrias e etc. — para fincar-se no conjunto de técnicas que carreiristas, com êxito sobremaneira no setor público, utilizaram para vencer

Sai, portanto, o ideal entra o maquinismo dos meios necessários para que este “vença”, que doravante converte-se em vencer-na-vida, em outras palavras, passar no concurso

Sai o professor entra o coaching. Sai o aprendiz no sentido genuíno da expressão, surge o concurseiro.


O que ocorre, dessa forma, é um rebaixamento do nível de imitação que os jovens, de modo geral, assumem para suas vidas. Sai o idealismo entra o duro pragmatismo. Desaparece, assim, a importante mediação do Mestre com o saber, que triangula pela inspiração à busca do saber, para a competição com o Concursado, que triangula pela inveja à busca do cargo.

Note o seguinte: o desejo que antes visava ao idealismo e atingia proezas objetivas incríveis, agora visa ao rame-rame da rivalidade com quem “tomou posse” antes de mim, passando dessa forma ao vale-tudo, entre chutes na canela e dedo no olho.

Sai, definitivamente, o duplo “mediação-inspiração” para entrar o duplo “competição-inveja”.

Não estou tirando isso da minha cabeça, pois faço uso aqui da antropologia consagrada por décadas de pesquisa de René Girard (1923-2015), em conceitos como “teoria mimética”, “bode expiatório” etc. Na verdade, estou dando contornos grosseiros embora oportunos, ao que Girard desenhou em nível de cultura ocidental, com seus mitos e religiões em extensa bibliografia além de cátedras que desenvolvem, e aprimoram suas ideias, no mundo todo. 

Feito o esclarecimento, sigamos.

3. 

Ao tempo em que o ser humano adorava símbolos religiosos ideais, como deuses perfeitamente éticos, santos miraculosos e heróis lendários, tudo corria bem porque o engendramento não era competitivo mas amoroso. 

Hoje, nenhum estudante de direito civil pretende superar pelo esforço um Pontes de Miranda (desconfio que boa parte deles nem saiba quem seja...), porém, atingir aquele veterano que é juiz de direito, auditor et ali, aquele carinha, em suma, que "sentava ao meu lado no preparatório e hoje está engravatado no prédio público".

O que Girard vai dizer é que quanto mais próximo está o modelo que faz a mediação do desejo mais ele é passível de rivalidade; de confronto. E o que está na proximidade, longe de despertar o amor, gera, do contrário, acirrada disputada e, no limite, violência. 

Heróis, invariavelmente, sofrem, quando vivos, os efeitos dessa inveja pública — geralmente são maltratados, solitários, padecem bulim etc. Com esse acirramento de disputa a violência é disparada até que surja, pelo seu ápice, a pacificação da rivalidade que é a morte do desejado. A morte do herói, o bode expiatório que pacifica as relações e suspende o ódio ao fazer do odiado objeto de amor. Tudo isso, conforme a melhor literatura girardiana (recomendo "Mito e Teoria Mimética" de Richard Golsan, a melhor introdução a obra de Girard).


4. 

Tudo, no Brasil, correu muito bem enquanto as vagas e a corrida ao serviço público cresciam ano a ano com concurso sobre concurso, e o lulismo, vale lembrar, tentou fazer toda uma classe média de  eleitores através do binômio: cargo público e sacada gourmet financada pela Caixa. 

No pós-Dilma, contudo, passa ocorrer, com o advento da austeridade liberal a privilegiar os ultra-heróis do mercado financeiro (já incomodados por esse, digamos, “baixo clero do estrelato social”), o estrangulamento da fonte pela “posse” no cargo. Com um detalhe: Diferentemente do banqueiro e demais financistas, esse baixo clero sob visada conseguiu, no máximo, se refugiar em condomínios operando em frágil lógica da distância — de modo a evitar a inveja. Não foi suficiente.

Com a crise fiscal, e as torneiras do serviço público fechadas pela diminuição dos concursos, foram esses próprios atores — nas suas camadas mais vulneráveis — a serem os objetos da repulsa social, supostamente consciente pela responsabilidade do caos. 

E o Iphone, a casa no condomínio (financiada), assim como o 4X4 (financiado) funcionaram, nesse circuito desejante, como “sinais vitimários”; exatamente como os “sinais” dos taumaturgos que iriam parar na fogueira.  

“Previdência”, “supersalários” ou “tempo de contribuição”, assim como demais “privilégios” que povoam a crítica especializada nada mais são que superfície do que realmente esconde: o desejo por “sacrifício”. De maneira que, essa palavra “sa-cri-fí-cio” é uma das mais usadas no debate para se referir aos servidores públicos; estes devem ser sacrificados nas reformas que o país precisa (talvez como as bruxas que traziam epidemias ao povo, porém não com  a mesma crueza sacrificial). 

Como diria Freud, o reprimido pode até se esconder, mas sempre retorna na linguagem....

Concluindo. 


O que fazer? Deixar que a teoria girardiana explique a crise brasileira. Risos?. Talvez entender que o movimento político que passamos não se difere muito das crises culturais que tornam todas as sociedades mais fortes, e transformam, pela dor, vilões num primeiro momento em heróis, que sempre foram realmente. Que possamos superar enfim o ressentimento (técnico?) dos que desejando ser ainda não são. 

Gabriel Leal 

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