Divagações no peó



O gastrocnêmio é o músculo mais superficial da panturrilha humana que somado ao sóleo, mais interior, forma o "tríceps sural", também conhecido como "batata da perna". O coturno cano longo utilizado por militares de modo geral, envolve essa musculatura e com o uso prolongado no tempo, sobretudo pela irrigação sanguínea diminuída ante o torniquete da amarração e o movimento em falso do músculo tensor, a essencial flexão plantar, que permite-nos equilibrar no calcanhar, e mais primordialmente, caminhar ou subir escadas, se perde por atrofia, sem cura ou fisioterapia regeneradora, levando assim a displasia primeiro, e o colapso depois, do tendão que segura toda essa estrutura, o famoso “tendão de aquiles”. Por isso, não é raro que a utilização perene de calçados desse tipo ofereça um retorno cruel aos seus usuários militares, o prejuízo do movimento. Penso isso, às 15h enquanto sou drenado pelo suor aos 40 graus da treze de junho em meu patrulhamento a pé, caxias, mão pra trás. O colete balístico que me abraça é montado com cinco lâminas de aramida, a mesma usada na alvenaria de cobertura industrial, e três de polietileno da família dos fenóis muito comuns em tubos PVC, cuja capa, de quebra, é feita em poliéster encardido e no geral contribuindo para a proliferação bacteriológica em meu corpo, mas antes, impedindo de maneira eficiente a homeostase do meu organismo, mantendo ininterruptamente uma sensação de sufocamento que se dá mais pelo aumento real da minha pressão arterial (resultado da compressão corpo-colete), do que algum disparador paranoico do tipo síndrome do pânico, ou demais fobias. Empapado pela sudorese agressiva, e o endurecimento do sal de usos anteriores por estranhos, o colete balístico se presta mais até como mortalha penitencial, como as vestes rústicas de João Batista, que, propriamente, equipamento de proteção individual malgrado seu vencimento para uso. Na cintura, fora do meu centro de gravidade, dependurado em angulações desproporcionais à minha relação peso-altura, a pistola, as algemas, os carregadores e o rádio transmissor, que somam juntos pouco mais de 2,5 kg, ou "leves" 25 newtons. Esses 25N, contudo, quando diários com o passar de vinte anos representam, segundo a associação mundial de ortopedia, o efeito compressor constante de uma anilha de 10kg sobre a cervical, como se fosse uma luva de boxe gigante empurrando meu tronco para baixo, este, já malsão dos movimentos inferiores pelo uso do coturno e pela dissolução gradativa de todas as cartilagens do joelho, algo natural de oito entre dez militares. O gorro circundando a cabeça, como amplamente documentando pela medicina, diminui a capilarização dos fios e também com o tempo promovem "alopécia areata" que, combinada com estresse, geram inexoravelmente calvície completa e irreversível. Além disso, se mal-ajustado, o gorro prende a circulação elevando assim a pressão craniana, culminando, dessa forma, no aparecimento de cefaleias e enxaquecas por eventos ambientais. Tudo isso, me vem a mente suada enquanto procedo meu peó subindo pela treze sentido GetulioCom pessoas abaratadas saindo das lojas, ambulantes catatônicos de sol e o azorrague do rádio lembrando urros da antecâmara do inferno. Ainda assim estou atento a todos os movimentos, do engraxate microempreendedor do tráfico formiguinha, do estelionatário sentado à praça aguardando vítima, e até de matadores de aluguel com chapéus de feltro lendo jornais próximo a barracas de garapa, esperando serviço. Detetives. Cafetões e putas disfarçadas. Nada da fauna das ruas me escapa o tirocínio. Ganho a av. Getulio VargasSubindo à igreja Matriz um ônibus rasga os sulcos do asfalto que lembram lava vulcânica endurecida cobrindo toda a rua depois de uma erupção. A fumaça preta, habitual aos meus pulmões severamente enegrecidos por força da escala reiterada de peó naquele mesmo lugar, nas mesmas ruas, são o roteiro da minha fisiologia de desenterrado, farda puída pelo duro trabalho em um homem do mato, intelectualmente bruto. São 6h ininterruptas de pé, atento, abordando suspeitos, atravessando cegos e velhas, encaminhando crianças aos seus pais, orientando perdidos, dispersando adolescentes vadios, prendendo em flagrante punguistas, dividindo às vezes a solidão de mendigos, às vezes comerciando pechisbeques com hippies. Esse é o meu peó e de meu parceiro Neves, dois fortes, escavados de pedra, dois bravos. 

Gabriel Leal 

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