Impressões da noite
Dedicado ao serviço operacional
Você jamais entenderá uma noite atrás de um painel de viatura. Com seu cheiro característico preenchendo recordações, instantes, angústias e modos de ser, com seus labirintos de estar e mil e um atalhos cartografados, sons, feições cifradas e toda uma memória sinestésica de percepções, bares, becos, esquinas, buracos manjados, lugares de enunciação da violência. Corpos habitados de nada, êxtase, frenesi, convulsão. Sombras a devorar seus habitantes. Com o vidro aberto vejo expressões incendiadas no ponto de encontro, carros abertos, uma menina amalucada sorri pra mim, o rapaz puxa fundo o cigarro entre dentes num movimento espasmódico de vaidade.
Converso em profundidade com meu parceiro: religião, sexo extraconjugal, revoltas não curadas misturadas a humor. Ensombreado, divago cortado por flashes de farol. O sono belisca, intermitente. Desembarco, revisto suspeitos, checo nomes pelo rádio, busco situações, aplico cortesia fria a uns, indiferença técnica a outros, violência aos violentos. Troco contatos. Corrompo meu vocabulário por vezes. Urino em mictórios abandonados, banheiros sinistros depois de longos corredores escuros. Vejo travestis agitados de cocaína e me comporto como desmancha-prazeres de homens responsáveis em carros ocultados no ermo, faces afogueadas do temor da delação após a surpresa da abordagem. Oriento, disperso. Persigo ladrões de postos de combustível, quase sem sucesso. Registro ocorrências dialogadamente resolvidas. Sigo o barulho dos cães latindo, dos sons ilegais, perscruto fluxos e festas. Espreito cantos de muro, pontos de consumo, covis de macumba. E aprofundo na noite. Ajudo condutores solitários em seus carros pifados, escolto perdidos. Vejo o drogado caminhando louco pela avenida vazia conversando com alguém.
Desembarco, abro um refrigerante no lanche que está por fechar, proletário suado. De saída, estalo a sirene em ruas de amigos, policiais, ex-namoradas para que se lembrem. O céu vai se abrindo como um útero dando à luz o dia. Um moedor de carne assolou cada músculo do meu corpo. A viatura baixa o tanque à reserva, só há silêncio no rádio, fim.
Gabriel Leal
Gabriel Leal
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