O que Napoleão tem a ver com a segurança pública?



Não é novidade que o serviço policial é realizado no contato direto com o cidadão, no famoso tête-à-tête. Lembro, pois o policial está na rua diuturnamente, seja patrulhando ostensivamente ou colhendo informações para investigação. De maneira que é no feedback da gente ordeira, que ele põe a prova seu serviço aferindo a sensação de segurança.

Porém, há que se considerar que policiais entre grande parte dos profissionais são aqueles que mais têm contato com gente desordeira, criminosa. Uma vez que, é ele o servidor pago para tirar essa parcela social de circulação, ou, idealmente, com sua ação preventiva evitar que esse mesmo público venha a cometer crimes. Daí, que o trânsito e a troca dado no quotidiano da ação é inevitável, de modo que não há um único policial que não conheça pelo nome os criminosos da área que atua.

Tudo isso está a reboque de uma dedução simples: policiais estão no mais das vezes na fronteira das relações sociais que podem, pelo seu dano, contagiar potencialmente a pior seu caráter. Não é raro a corrupção do vocabulário antes de qualquer outro tipo de corrupção. Não é raro a simpatia pelo universo do risco, da ostentação e do prazer — de que vive o crime — antes do engajamento nesse conjunto de práticas, depois de atravessada a fronteira ética.

O policial, dessa forma, deve ter um controle ético — pessoal e institucional — sobre sua conduta no mínimo severo. Considerando “severo”, aqui, o conjunto de direitos assistidos a ele — sobretudo a educação técnica ao longo da carreira — que implicam, consequentemente, deveres.

Ou seja, na ausência do cuidado técnico que ampara o profissional na capacitação e contínua progressão na carreira — lembrando-lhe sempre quem é, seus valores e origem. Na ausência principalmente da remuneração condigna ao regime de assédios que enfrenta diariamente — que impedem, na medida do possível, a desassistência familiar do profissional. Podemos dizer que a vulnerabilidade do policial atinge o grau máximo e a sirene da atenção é disparada.

O que se infere disso é que em contextos de salários atrasados, como vemos país afora, o que temos potencialmente é aumento da violência policial, bicos (que elevam geometricamente a morte de policiais) e sérios problemas no campo ético. A corrupção, o achaque sistemático, a erosão dos limites e relações etc. Pois, se o policial é aquele que está na zona limítrofe de atuação do Estado frente ao crime sua mera omissão, quando no dever de fazer, implica consequências terríveis para a cidadania. Praticar, ou seja, agir criminosamente implica um mal duplamente mais grave e lesivo.

Trata-se de um filme que vimos no Brasil dos anos 80, com muitos policiais à mercê da própria sorte (tristemente) tirando seu salário na rua —  ao fim de um crônico processo de abandono — combinado com desestruturação familiar e dependência química. Nessa instituição que herda-se de 80 para cá, sobretudo a Polícia Federal que emerge pós-CF, é pautada a formação técnica dos quadros, a disciplina dos maus policiais, mas principalmente, em remuneração digna e regular. Não por acaso, é a Polícia Federal o eixo sob o qual articula-se com sucesso e aplauso social o desmonte do maior sistema de corrupção da humanidade, visto no mensalão/petrolão.

Esse filme, pode-se dizer, teve happy end em grande medida. As polícias, não só a federal, levaram pelo menos 20 anos para profissionalizar seus quadros com técnica e valores contra a violência e a corrupção estruturais da “old school”, desse modo, praticamente erradicando um ethos, uma epidemia. Mas, bastariam o retorno daquela conjuntura para que todo esse esforço e imunidade despenquem e o vírus da truculência e da corrupção se assanhem com toda força, agora até com mais viço. Nada surpreendente, pois desde Napoleão sabemos que “uma tropa marcha sobre o estômago”.

É preciso dizer, por fim, que democracia começa com a liberdade civil e esta só é possível quando homens e mulheres decidem arriscar a vida em prol da sociedade, devidamente honrados pois dignos — biblicamente — do soldo.   


Gabriel Leal  

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