Reflexões de um policial sobre a Audiência de Custódia
Quanto mais a pena for rápida e próxima do delito, tanto mais justa e útil ela será
Beccaria
O lirismo da marginalidade pode encontrar inspiração na imagem do fora da lei, o grande nômade social.
Foucault
Hiperbolicamente, dez entre dez policiais do serviço
operacional são contra a audiência de custódia. O sentimento de revolta desses
profissionais é comum ao ver considerado como perdido o trabalho, por vezes com
o risco da própria vida, em prender o criminoso que será solto no dia seguinte;
às vezes apenas horas depois. Sua frustração é reforçada ainda pelo sentimento
popular que vê consolidada a impunidade oriunda do Estado, que deveria antes
protegê-lo daqueles que a polícia prendeu quando este não podia fazê-lo por
suas próprias mãos.
A aposta de boa parte dos estudiosos do assunto é que há uma
desinformação técnica do profissional da segurança pública quanto às motivações
legais e doutrinárias desse instituto penal. Imagina-se assim um
desconhecimento geral da tropa — que por sua vez irrigaria a revolta... — sobre
o que é e os porquês que amparam essa audiência, que eles garantem, ser
supedâneo da democracia. No fim, fica a esses criminólogos e juristas a
sensação meio blasé que o problema é de desconhecimento, ignorância, que caso
suplantada pela doutrina e estatística, seria enfim vencida na cabeça do
policial que mudaria de opinião — ou, no mínimo, se conformaria à lei.
O que quero mostrar a seguir, e ao contrário do argumento esclarecido,
é o desconhecimento da “criminologia crítica” ao fundamento e raiz da audiência
de custódia, além do preconceito — que limita a visão de alcance sobre a
perspectiva policial — a impedir que se veja a audiência de custódia como prejuízo
de democracia.
***
O que é?
A Audiência de Custódia (doravante, aqui, AC) existe para que o juiz analise pessoalmente a
legalidade e a necessidade da decretação da prisão preventiva, assim como para
a prevenção de maus tratos e tortura durante a abordagem policial. Ademais, trata-se de um projeto desenvolvido para
dar exequibilidade a uma norma que se encontra no ordenamento jurídico
brasileiro desde 1992, por meio do Decreto n. 678/92 — Convenção Americana
sobre Direitos Humanos, também conhecida como Pacto de São José da Costa Rica e
do Decreto n. 592/92 — Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (PIDCP).
Em suma, trata-se de uma audiência “sem
demora”, do preso e seu defensor com o juiz e com o Ministério Público. Mais.
Como um mecanismo de apuração de infrações e ilegalidades, visando cessar os
atos de maus tratos e tortura quando existentes.
Ou ainda, conforme o próprio Conselho
Nacional de Justiça, “consiste na criação de uma estrutura multidisciplinar nos
Tribunais de Justiça que receberá presos em flagrante para uma primeira análise
sobre o cabimento de medidas alternativas ao cárcere, garantindo que presos em
flagrante sejam apresentados a um juiz de Direito, em 24 horas, no máximo”.
Para dar síntese ao que é a AC diríamos
que é um direito fundamental pois, segundo o jurista Luiz Flávio Gomes, “toda
pessoa detida deve ser apresentada, sem demora, à autoridade judiciária
competente. A violação dessa garantia torna a prisão arbitrária” (Comentários à
Convenção Americana sobre Direitos Humanos, 2a. Ed, p. 57)
***
Pra quê
Em suma, para resolver o problema da
superlotação dos presídios — a despeito do Executivo que deveria cuidar do
sistema penitenciário. Ainda, com a insuficiência do cuidado processual do
magistrado que, supostamente, na presença do preso poderia melhor analisar os
fatos em si, ouvindo o preso, tocando a crueza das ruas e desse modo
aproximando-se do caso concreto e da vida real. Sob o parâmetro antecedente de
que a análise dos documentos produzidos pelos policiais militares e civis (com
técnica e fé pública) não fossem suficientes dado que à espera do olhar humano
e da compaixão visando soltura a ser exarada pelo juiz — neste raciocínio o
único elo entre a CF e a prisão.
Surge a AC como
alternativa ao encarceramento acima de tudo. Trata-se, à revelia do que ela é,
de instrumento de política penitenciária: ou seja, desencarcerar. Dessa forma,
não é negligência jurídica os mais de 20 anos de ignorância quanto a PIDCP na
apresentação do preso ao juiz “sem demora”, mas de desarme de uma bomba relógio
que se configurou, já em 2014 conforme o
CNJ, num total de 567.655 presos no Brasil. Considerando também as prisões
domiciliares e em regime aberto, o sistema chega a 715.655 pessoas, com o
Brasil na terceira posição entre os que mais encarceram. Uma média de 300
presos para cada 100 mil habitantes.
Por trás, dessa
forma, da norma de DH agora atendida pela AC, encontra-se um pensamento
filosófico que, no pretexto de resolver um problema real (a superpopulação
carcerária), promove a crítica e o combate a “cultura do encarceramento”. Aqui,
estamos no coração da AC, que, não é uma constitucionalização das prisões no
Brasil e seu ajuste cidadão, porém, uma intepretação constitucional do fenômeno
carcerário brasileiro. Explico.
***
O ovo da serpente
No intento de interpretar
constitucionalmente o fenômeno carcerário brasileiro tudo que se fez, com a AC,
foi deslocar a esfera de aplicação da justiça
penal para a justiça social. Pois,
o sistema penal nessa mudança de paradigma está concebido não para suprimir as
ilegalidades, mas para geri-las diferencialmente a fim de promover justiça
social — a despeito dos demais poderes e da própria cidadania que almeja ver-se
livre do convívio com um criminoso.
Assim, princípios penais básicos passam a ter significado social pautando-se na inclusão social e na redistribuição de renda. Nesse contexto, fica fácil entender porque, para além da letra da lei, o contexto de classe social e cor da pele podem, nesse cálculo de justiça social, contribuir para uma soltura em AC — independentemente do crime penal cometido.
Assim, princípios penais básicos passam a ter significado social pautando-se na inclusão social e na redistribuição de renda. Nesse contexto, fica fácil entender porque, para além da letra da lei, o contexto de classe social e cor da pele podem, nesse cálculo de justiça social, contribuir para uma soltura em AC — independentemente do crime penal cometido.
Nessa leitura penal, pessoas socialmente
distintas ao cometerem crimes similares deveriam ser responsabilizadas
diferentemente (espécie de isonomia sócio-política).
O direito penal, por assim
dizer, refuta o primado moral da ação humana livre para fincar raízes no
determinismo social que produz o “sujeito criminoso”, não mais como autor, mas
como vítima.
Daí ser fundamental na AC, o
contato face a face do juiz com a “pobreza do pobre”; com este “lugar
preferencial da virtude”, com o “rosto de Cristo”, dirá a teologia da
libertação. Em criminologia, esse tema está adstrito ao chamado “populismo
penal” e toda teoria com lastro no garantismo jurídico. Mas não só — como
veremos.
Assim sendo, a AC reflete apenas
uma tendência filosófica (intepretativa) de substituir modelos de justiça penal
pela proteção do indivíduo contra os abusos e os excessos punitivos do
Estado (justiça social). Literalmente, uma defesa da sociedade contra o Estado.
***
Conclusão
No medievo dos soberanos havia
um direito sobre a vida e a morte. Estes faziam morrer ou viver. Conferiam
sombras ou espendor a tudo que existia no Estado. Em ciência política, chamamos
esse período de Estado Soberano, com fulcro no poder soberano.
500 anos depois, grosso modo, o
poder do soberano é uma tecnologia de controle. A soberanização da vida dá
lugar a estatização do corpo. Sai a pena cruenta entra a vigilância tecnológica.
500 anos depois dos soberanos
que faziam viver e morrer, é atrás de um projeto que o Estado se movimenta. Um projeto
de emancipação da consciência e liberdade civil — as florações maiores do
Iluminismo de 1789. É nesse projeto, que está no extremo oposto do poder
soberano, que se pretende socializar as
virtudes; não no sentido de distribuí-las, todavia, no sentido de
identificá-las socialmente com as classes. Contra a penalização que
institucionalizou as grades numa “sociedade disciplinar”, com muros nas escolas
e grades no cárcere, aposta-se agora no Iluminismo do séc. XXI (em outros
termos, estudiosos da Escola de Frankfurt) no Estado que inverte as relações penais, a fim de justiça social.
Ou seja, o desencarceramento em
massa tem raízes na ideia de que estruturalmente opressor o Estado deve ser
substitúido pela Sociedade — com S maiúsculo. Esta, nada mais nada menos, que o
ideal utópico de “comunidade”, onde, em regra, quando se conhece as motivações
e os ultrajes sofridos a ilegalidade praticada ganha o “ismo” do ilegalismo do
Estado contra o “agressor”, a vítima — em última instância classicizar as
relações jurídicas.
Não se trata simplesmente de
vitimização do criminoso, mas de culpabilização da autoridade estatal, no caso,
da polícia. Considerando que a “autoria” fica esvaziada na sociologia interpretativa
à medida em que ela muda de pólo, isto é, do pólo do criminoso ao policial;
pois o criminoso não deixa de existir apenas é transladado para a figura do policial
— insisto. Numa AC, sem generalizações, busca-se mais a perspectiva do “lugar
de fala” do criminoso que da sociedade real, isto é, aquela que ligou 190.
Policiais, na AC, sequer são ouvidos.
Por fim, não precisaria dizer
que a política penitenciária não é o espaço de políticas penais stricto sensu.
Ou seja, à decisão do juiz que prende deve estar a responsabilidade do gestor executivo
que garante o cárcere, harmonicamente.
E a lógica de que com o aumento númerico de encarcerados deve crescer o cárcere é de uma obviedade atroz; e jamais, contudo, a suspensão ou o desencarceramento puro e simples.
Pois, é a favor da luz natural do bom senso (que o marxismo dolosamente suplanta no criminoso como revolucionário ideal), que a sociedade (esta real) tem clamado pela manutenção da prisão do indivíduo que já foi conduzido n vezes.
E a lógica de que com o aumento númerico de encarcerados deve crescer o cárcere é de uma obviedade atroz; e jamais, contudo, a suspensão ou o desencarceramento puro e simples.
Pois, é a favor da luz natural do bom senso (que o marxismo dolosamente suplanta no criminoso como revolucionário ideal), que a sociedade (esta real) tem clamado pela manutenção da prisão do indivíduo que já foi conduzido n vezes.
Mesmo sem previsão cristalina no
CPP (Código de Processo Penal) a filosofia por trás da AC, e sua prática,
fundamenta o completo descolamento do anseio social da gente comum — talvez,
quem sabe, os que governam numa democracia. Daqueles que, com a insegurança do
convívio público com criminosos libertos ao dia seguinte do delito, passam eles
mesmos a viver num presídio a céu aberto. Se isso é o governo dessa gente, o
poder do povo, podemos investigar o que seria tal regime.
Gabriel Leal
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