Comentários ao pacote anticrime: Ou Sérgio Moro e a reinvenção da República






Introdução

Para iniciar, um exercício de imaginação: Imagine você a quantidade de soluções contra o crime que um sujeito após ter comandado o julgamento do maior caso de corrupção da história da humanidade teria para dar? Agora, dê um passo, e considere que esse sujeito, depois de julgar esse esquema na primeira-instância, torna-se o ministro da justiça e pode, enfim, dar concretude a essas ideias. Pois é, substitua os termos “sujeito” e “esquema” por Sérgio Moro e Lava Jato, respectivamente. O cenário, Brasil 2019, e o primeiro lote de ideias: o pacote anticrime apresentado dias atrás. O que há de novo nesse pacote? O que pode representar em termos concretos na segurança pública e na impunidade ainda reinante em nosso país? É o que tentaremos dar pistas nas linhas que seguem.


— Americano é soda [sic], diz um amigo meu. Lá não se perde tempo nunca porque time is money e tudo para existir passa pelo crivo do pragmatismo mais cruel: o teste do uso. Se funcionar, bem, se não, já elvis. Vale para o capital, vale para o direito também. Nem por isso, contudo, as regras penais atendem menos ao humanismo presente nos tratados internacionais de direitos humanos, do contrário, alega-se, que é em proveito das civil rights e do primado da liberdade (mais importante que a vida por lá) que a flexibilização, a dinâmica e o “comércio” entre as partes no tribunal — emprestando da economia sua funcionalidade —, operam para as decisões, sem lero-lero.

Se a população carcerária americana é uma das maiores do planeta é porque respeita essa dinâmica, e a alta rotatividade no seu público, vem a ser o espelho da própria sociedade que cresce e se fortalece nesse sistema, e não apesar dele. A distinção é sutil e profunda, note: à medida que a sociedade cresce economicamente, dando ao maior número de pessoas possível a oportunidade de enriquecer, é nesse sistema penal que o paralelo é encontrado — ou melhor, que o suporte é encontrado.

Ou seja, é nesse “paradigma penalista”, por assim dizer, que os EUA prosperam e acumulam na forma da maior renda per capta global o que gente do mundo inteiro inveja, o american way of life. Não se trata aqui de por-se de joelhos ao Tio Sam mas reconhecer que o padrão referido de consumo e auto-imagem do planeta é USA. 

E o que isso tem a ver com Sérgio Moro e seu pacote anticrime?



***


Moro estudou em Harvard Law School, e viu que o Estado que confere liberdade civil aos seus nacionais para serem produtivos está a reboque da fórmula que prende quem rouba àqueles que produzem; em suma, que prende os que roubam a liberdade dos que nem nasceram ainda, com organizações criminosas e esquemas incestuosos com o Estado etc.

Na prática, qualquer estudioso atento do direito vê nos EUA a lei sendo usada em função do sentimento nacional do americano: que é a política do seu bem-estar, que é produzir, consumir e gozar do seu trabalho. 

A lei como meio de política social, ou, em termos discutíveis e em alguns casos perigosos: lawfare. Este termo controverso pode ser resumido como uso da lei para fins políticos — “políticos”, aqui, no sentido forte do termo: política pública. 

Em outras palavras, é mexer as peças no tabuleiro legal para criar uma presunção de culpa, que advém da certeza social da existência do crime, mesmo quando isto ainda não está formalizado no processo. Literalmente, seria um anti-esquema: considerando que organizações criminosas operam, na maioria dos casos, nas fímbrias da lei, em semitons interpretativos de modo a torcê-la para uso, neste caso, escuso. John Comaroff, professor da mesma Harvard em que Moro estudou, acusou-o de “lawfare”, defendendo à época inclusive, sua substituição na Lava Jato por ter criado uma presunção de culpa em relação a Lula (John era consultor dos advogados de Lula, vale lembrar).

Ao longo da Lava Jato tem sido comum às críticas quanto a publicidade excessiva das investigações, a quantidade de interceptações, o vazamento de informações e áudios, e principalmente: a prisão preventiva como instrumento a fim de delação premiada. 

Grosso modo, a prisão para que os suspeitos high society produzam, pelo corpo mole da vida boa apruptamente retirada, provas contra si mesmo; sobretudo caguetando comparsas. Contestam os advogados (cujos honorários são estelares) que a Lava Jato avilta direitos fundamentais ao fazer uso indiscriminado dessas prisões, com espetacularização televisionada, engajamento da imprensa e manipulação da opinião pública. 

Acontece, para tristeza dessa corrente de análise, que o país se mobilizou para eleger quem apoiasse a Lava Jato em 2018, do deputado ao presidente. Assim sendo, a Lava Jato nem de longe tornou-se a caça inconstitucional e moralizante de um juizeco do Paraná, antes tornou-se (quase) uma instituição pública. A prisão de Lula, ao vivo em rádio e tv, uma apoteose da honra nacional. É com o nacionalismo popular — ou seu resgate, para a ala reacionária — que Bolsonaro conseguiu mobilizar minds and hearts ao projeto de país que se pretendia daqueles que pagam a conta; a conta da corrupção. Ao tomar posse, chamou Moro pra tocar esse processo de dar sentido ético ao processo penal-peninteciário brasileiro. E o projeto anticrime leva muito dessa aposta.

O pacote anticrime

O primeiro ponto, é a prisão imediata após condenação em segunda instância. Conforme o projeto:

“Ao proferir acórdão condenatório, o tribunal determinará a execução provisória das penas privativas de liberdade, restritivas de direitos ou pecuniárias, sem prejuízo do conhecimento de recursos que vierem a ser interpostos”.

Trata-se, ao que me parece, de uma obrigatoriedade aqui. O calcanhar de aquiles dessa proposta é que, embora seja corroborada pelo STF, tem seu respaldo hoje em apenas dois votos. Os constitucionalistas garantistas, contrários a prisão imediata e obrigatória após decisão por tribunal, apontam que a constituição é clara em garantir até o último suspiro de recurso a liberdade do “inocente presumido” (totem dessa corrente), assim como o art. 283 do CPP (Código de Processo Penal). Vejamos.


Artigo 5º
LVII — Ninguém será culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória.

Artigo 283
Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.

Embora haja uma desconexão profunda entre o sentimento social (a clamar pelo fim da impunidade) e a garantia da liberdade até a última instância, conforme a leitura garantista desses textos, o que pode ocorrer, caso o STF decida contra o pacote de Moro, é um adiamento da prisão da elite corrupta, o que no caso brasileiro, significa adiamento ad aeternum. Por isso, é tão importante esta proposta de Moro, de maneira que manter a obrigatoriedade da prisão em segunda instância, é preservar a Lava Jato e seus desdobramentos, bem como mostrar que a lei, e a cadeia, é feita para todos.  

Trata-se a leitura garantista (neste caso, pró-crime), no limite, de um tamponamento do Direito aos aspectos sócio-políticos da nação que dá sentido a existência de uma Carta Magna. Menos, portanto, do que uma incorporação do povo pela norma (o que é barbarismo, stricto sensu), e mais um diálogo do Direito com aqueles que intepretam seu próprio contrato social, a saber, a sociedade civil.

Refinando o argumento, trata-se mais de preservar — via garantismo — um regime de leitura constitucional que hoje é o anteparo da corrupção do que destinar, pelo contrário, sua leitura e interesse à maioria democrática, com os valores que a história retifica de tempos em tempos no comércio com a moral e a economia, esferas as quais o Direito se une; e não impera soberana — como os garantistas imaginam e o positivismo jurídico do XIX afiança.  

O segundo ponto de destaque é o Plea Bargain. Tal instituto, em síntese, é um acordo entre o Ministério Público e o réu mediado pelo advogado. Nesse “contrato”, por vezes chamado assim mesmo no direito inglês, o réu literalmente barganha sua confissão em troca de uma pena menor ou da ausência de repercussão civil da sentença penal.

Há diversos tipos de “barganha” (bargain): a que diminui a quantidade e a gravidade de acusações (charge e count bargaining), a que diminui ou exclui o número dos fatos ou tipos acusatórios (fact bargaining), e a mais comum, que é aquela ligada a sentença (sentence bargaining). Sai a forma inalienável do direito processual com seu necessário passo a passo para o primado da dinâmica, o apelo pela melhor saída visando celeridade e resolutividade. Tudo, ao melhor modo americano.

Em um país como o Brasil “pedir a barganha” antes do rito processual e suas centenas de fases recursais possíveis ou, de forma direta, assumir-se rendido pelo MP quase num “perdeu, playboy” com a boca na botija, é alternativa que não passa na cabeça de nove entre dez criminosos; pois a aposta deste é no moroso processo penal a arrastar via defesa até a prescrição. Sobretudo, porque em termos práticos o sistema processual brasileiro é feito para não condenar ninguém, ou seja, pró-crime. Mesmo em júris onde o réu é condenado este pode dar um beijo no ombro (hoje) e sair pela porta da frente, livre-leve-e-solto. Com o pacote anticrime, não. Condenado, ele sai do júri para o presídio.  


Por isso, a combinação da barganha, ou solução negociada (que soa melhor), com a prisão em segunda instância, é necessária. As vantagens principais da solução negociada são: 1. tramitação rápida (com diminuição da carga de trabalho judicial e consequente melhoria na qualidade e celeridade); 2. economia (todo o custo do processo, de expediente processual a recursos humanos); 3. diminuição do encarceramento (dado aumento da rotatividade dos presos com penas mais baixas, porém cumpridas); 4. vítimas sem desgastes do longo processo criminal. As desvantagens seriam, somado ao feixe de direitos fundamentais secundarizados como a presunção da inocência, a possibilidade do blefe da promotoria com provas alegadas na manga durante a negociação, todavia, inexistentes.

O terceiro ponto que merece atenção no projeto anticrime, reside na sensibilidade e atenção do presidente Bolsonaro e Moro quanto às centenas de policiais mortos ano a ano em nosso país. Na fala de Moro "O policial não precisa esperar levar um tiro para ele poder tomar alguma espécie de reação, o que não significa que se está autorizando que se cometam homicídios indiscriminadamente". Trata-se, muito longe de uma “licença para matar”, tão-somente de uma explicitação detalhada da excludente de ilicitude “leígitima defesa” para profissionais de segurança pública, ou seja, o respaldo de uma ação de matar para prevenir agressão quando em risco ou conflito armado. O projeto ainda prevê redução de pena até a metade ou a não condenação se o ato que configura legítima defesa “decorrer de escusável medo, surpresa ou violenta emoção”. 

O quarto ponto de destaque seria a prisão para os crimes ligados a corrupcão (crimes contra a Administração Pública, como o peculato, a corrupção ativa e passiva). Em suma, prisão para crimes apenados em menos de oito anos. Com o pacote, Moro altera o regime inicial de cumprimento desses crimes para “fechado”. Nesse aspecto há também endurecimento das regras de progressão de regime dos presos por crimes hediondos, bem como a obrigatoriedade de que componentes de organizações criminosas (agora definidos em suas respectivas facções) sejam mantidos em presídios de segurança máxima. Soma-se a esse ponto, o confisco de bens desde que incompatíveis com a renda lícita do acusado, nos crimes punidos com mais de seis anos de prisão. Para arrematar, o pacote cria o tipo “caixa 2” no código penal.

Conclusão  

Todos esses pontos do pacote anticrime de Moro são sensatez em forma legal. É o ajuste perfeito ao anseio social, para ser clichê. Mas, principalmente, é a aposta numa sociedade liberal, que se orienta pela “negociação entre as partes”, pelo arranjo dinâmico da lei contra o crime, de uma Administração que não se melindra com a ortodoxia constitucional, antes a submete aos seus desígnios, que são desígnios sociais; e não letra fria. Para as polícias, o pacote anticrime é um instrumento poderoso, embora incipiente, para a preservação da ordem pública, o que reflete na vida de cada zé ou maria quando sai de casa em busca de bem-estar mediado pelo suor do trabalho. No fundo, o pacote anticrime de Sérgio Moro é mais que a mudança do paradigma penalista brasileiro (hoje fundado na malandragem recursal técno-jurídica), é o preâmbulo da República por ser criada. 


Gabriel Leal  

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