Ela: uma descrição do afeto




1,67m... Talvez menos. Com o salto do coturno, pouco mais, certamente. 59kg, 58kg... não sei. A pele é brônzea metálica tendendo ao ouro rosê, com mínimos dégradés ao branco no antebraço plano que é envolvido com cálculo pela manga dobrada lado a lado acima do cotovelo agudo. A farda esconde o seu colo e o que se vê do pescoço, além do pingente dourado sobre a gola apertada da camiseta branca, é a extensão do busto, que é discreto porém marcante, e acentuado, mesmo na ausência de qualquer olhar concentrado. O queixo é semiovalado, diria até inquisidor quando sorri, projetando assim um modo permanente de ironia se erguido ― o que matiza gestos habituais de incógnita gerando suspense crescente durante qualquer conversa informal. A boca lembra vaga soberba em seu traçado elíptico, um certo ímpeto, sobretudo fechada entre lábios finos, artificialmente cremoso por batons incomuns antes da meia-noite. O contraste com os dentes regularmente justapostos, alvos, forma uma moldura imponente que traduz uma inteligência vista à flor da pele: a pele dela. Do contorno de um nariz que arfa mansamente, duas safiras âmbar como sol de abril podem dar ideia do que sejam seus olhos, sempre ambivalentes de sentido como neste crepúsculo. A sobrancelha ― um tanto selvagem ― desenha um dossel delicado que confere plasticidade semântica a expressões de mistério a engravidar curiosidades, aguçado mais e mais em ocasiões onde seu silêncio oblíquo ― cultivado por longo hábito de esquivar-se ― desnorteia quando ela é questionada ou desdenha. Uma testa regular encaminha os primeiros fios longos até seu fim, dóceis e muito finos eles escorrem até o dorso angulado pelas asas, e ao serem rasgados por mãos hábeis, devem quebrar em ondas contínuas naquilo que os antigos davam o nome de véu; presos contudo como estavam, apontam uma doma cautelosa e homogênea de quem tem o absoluto controle sobre seus movimentos, sobremaneira aqueles pendulares em que ela parece flutuar enquanto caminha. Do seu abdômen pode se ver projetado o par mais agudo de costelas envolvendo, como um segredo, a depressão que vai até a cintura. Lá, onde um quadril articulado sustenta uma coordenação fina, vê-se o contorno de músculos rijos, simétricos e suaves. Toda sua postura acentua o tônus sinalizando personalidade, principalmente ao sentar-se em ângulo reto, de pé ali como estava, seu gênio é reforçado involuntariamente pela semi-parábola que suspende suas primeiras vertebras do dorso sem que seu ombro saia das paralelas encimando mil-possibilidades de arranjo a dois, o que possibilita, em perspectiva, a vista de uma musa a ser desenhada a pincel sem que ela perceba ou se esforce nesse ato; em estado de graça. As mãos sugerem força calculada e alguns pretéritos pontos de oxidação calosa confundem o sentimento do tato macio durante o aperto de mão, aligeirado com perícia pelo desprezo a vãs seduções, feito apenas por quem consegue embaralhar crueza profissional com palpos toques de veludo muito contidos ― exigindo bis. A farda que encobre pernas longilíneas demais para seguir sem bússola devolve à realidade meia-dúzia de labirintos do afeto, que são derivas impensáveis de adentrar enquanto dividimos o mesmo espaço, ambos parados insuspeitos na fila serpentina, sem que o tempo consuma-se do mesmo modo ― ao menos para mim, como uma sonata para instrumentos de escrita.

Gabriel Leal 


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