O ser e o texto: a desconstrução derridiana como método na pesquisa
1.
Para iniciar, Derrida não
criou um método, sobretudo método de pesquisa. A descontrução, como Heidegger
a pensou, está radicada antes no pastoreio
do ser diante do esquecimento a que somos submetidos pela tecnologia e
ciências, do que a critérios metodológicos, operando entre o sujeito e seu
objeto de investigação. Pois, para o mestre da Floresta Negra, a desconstrução era
o sucedâneo da visitação da angústia, esse caminho aberto paradoxalmente pelo
eclipse objetivante, e violento, das categorias: homem, mulher, humanidade,
verdade, validade, conhecimento, realidade, branco, negro et ali.
Não haveria caminho
(clareira), portanto, senão pelo espaçamento que nos dista dessas categorias
compactadas, e por isso, é necessário des-truir, elidindo os binarismos; dado que
habitar sob o império das ciências, da tecnologia (e mesmo da própria filosofia
academizada) é investir no fracasso e no embotamento alienador da consciência
(inautenticidade).
Em suma, é habitar naquele tédio (angústia?) que Jean-Paul Sartre, um heideggeriano, precisamente identificou através de Roquentin em A Náusea: um profundo descompassso entre as mediações que ele estabelece com as coisas e as coisas mesmas, pois estas são anteriores à sua compreensão, e tampouco dele dependem, o que deflagra sua absoluta nulidade, mas uma nulidade consciente de si.
O que Heidegger vem nos lembrar, considerando o esquecimento metafísico a que estamos mergulhados, é que o e-xistir:
Em suma, é habitar naquele tédio (angústia?) que Jean-Paul Sartre, um heideggeriano, precisamente identificou através de Roquentin em A Náusea: um profundo descompassso entre as mediações que ele estabelece com as coisas e as coisas mesmas, pois estas são anteriores à sua compreensão, e tampouco dele dependem, o que deflagra sua absoluta nulidade, mas uma nulidade consciente de si.
O que Heidegger vem nos lembrar, considerando o esquecimento metafísico a que estamos mergulhados, é que o e-xistir:
(...) nunca
é apenas um objeto presente em um lugar qualquer, e, menos ainda, um objeto
fechado em si. Ao contrário, esse existir consiste em "meras"
possibilidades de apreensão, que são dirigidas para o que se lhe entrega no
encontro e que não podem ser apreendidas pela visão ou pelo tato. Todas as
representações capsulares objetificantes de uma psique, um sujeito, uma pessoa,
um eu, uma consciência, usadas até o presente momento na psicologia e na
psicopatologia, devem desaparecer, na visão daseinsanalítica, em favor de uma
compreensão completamente diferente. A constituição fundamental do existir
humano, a ser considerada daqui em diante, deverá chamar-se
"ser-o-aí" [Da-sein] ou "ser-no-mundo". Entretanto,
o "aí" [das Da] desse "ser-o-aí" não significa, como
se entende vulgarmente, um lugar no espaço próximo do observador. O que o
existir enquanto ser-o-aí significa é a manutenção da abertura de uma região,
fundada no poder-apreender as significações daquilo que se dá e que se lhe
entrega [sich ihm zuspricht] a partir de sua claridade. O ser-o-aí
humano como região do poder-apreender nunca é um objeto meramente
presente. Ao contrário, ele não é de forma alguma e, em nenhuma circunstância,
algo que deva ser objetificado.
A desconstrução, dessa forma,
é um projeto de criação de habitats,
ou uma “holzwege” no alemão de Heidegger, que, na tradução de Haroldo de Campos
nomea-se “entreveredas”.
Numa sentença, uma proposta de invenção de novas hospitalidade.
Nesse sentido, aposto no que segue uma leitura do que venha a ser desconstrução para Derrida e o que isso (id?) seria na pesquisa.
Numa sentença, uma proposta de invenção de novas hospitalidade.
Nesse sentido, aposto no que segue uma leitura do que venha a ser desconstrução para Derrida e o que isso (id?) seria na pesquisa.
2.
Para Derrida, nossas
interações com o mundo são sempre textuais.
Poderíamos então dizer, desde já, que ao invés da união do ser-com-o-texto, o ser é o texto — dessa forma, nos desobrigando aqui a ter que definir o que o ser REPRESENTA na história da filosofia.
Poderíamos então dizer, desde já, que ao invés da união do ser-com-o-texto, o ser é o texto — dessa forma, nos desobrigando aqui a ter que definir o que o ser REPRESENTA na história da filosofia.
Em breves palavras, toda
forma de mediação do sujeito com o mundo, todo seu ser-no-mundo, é uma imbricação textual, um entrelaçamento de
escrituras diversas.
Em Derrida, a metafísica do desvelamento, do real por trás da letra, do significado atrás do significante, só acentua o preconceito ocidental dado na modernidade.
Em Derrida, a metafísica do desvelamento, do real por trás da letra, do significado atrás do significante, só acentua o preconceito ocidental dado na modernidade.
Não se trata de dizermos
tão-somente que o autor morreu. Não. Pois, não há autor. O diálogo do texto só
se dá com outro texto. De sorte que, não existe uma perspectiva externa ao
texto, como um dado a ser decifrado, pois o texto em si se projeta, ec-sisti; não há pois um alguém que quer
significa por detrás da letra, de modo que o mundo é o texto e suas
textualidades não têm hierarquias entre si.
O bilhete da amada, por exemplo, prescinde da amada para provocar diferenças que escapam a temas como amor, sedução, flerte, companheirismo etc, apesar das intenções ali evocadas. Essas intencionalidades são outros textos, a-morais, completamente independentes; metafísicos.
O bilhete da amada, por exemplo, prescinde da amada para provocar diferenças que escapam a temas como amor, sedução, flerte, companheirismo etc, apesar das intenções ali evocadas. Essas intencionalidades são outros textos, a-morais, completamente independentes; metafísicos.
Para Derrida, é preciso
abandonar a metafísica da presença,
de partida.
Anos a fio, quando Heidegger
aprendera de seu mestre, Husserl, que o primeiro passo do “inquérito
fenomenológico” era a suspensão conceitual do pesquisador sobre as coisas, a epoké, ele certificou-se do dever
de fazer da palavra, do texto filosófico calcado na tradição, o suporte para o
desmonte de centenas de anos de preconceito teórico, desentranhando outrossim o
seu re-calque. É o que realiza ao fazer, Heidegger, filologicamente e pela explosão das
inter-textualidades, com os conceitos que operavam, no XX, sem o respiro de
quando foram pensados por seus criadores, já sob capa de preconceitos
históricos.
O que o Autor de Ser e Tempo fez foi conferir
a velhos e surrados conceitos-chave em filosofia, um habitat inteiramente novo,
pois re-aberto, do que eram categorias antes engessadas, sem qualidade
narrativa.
Nesse contexto, era preciso
quebrar, desconstruir para abrir a floresta entreveredas.
É, assim, como uma nova ciência do homem que Heidegger se depara, pois, em nome do que pensava, não há que se falar de “homem” inclusive; este, é apenas uma sucessão de preconceitos.
É, assim, como uma nova ciência do homem que Heidegger se depara, pois, em nome do que pensava, não há que se falar de “homem” inclusive; este, é apenas uma sucessão de preconceitos.
3.
Derrida parece-me dar um
passo além de Heidegger ao denunciar o logocentrismo,
essa espécie de crença em níveis de significado, para além do texto, a filiá-lo
hierarquicamente. Como se a fala, quem ou coisas mais reais, tivessem primazia
sobre o texto. Como se a escrita fosse o mero registro da fala. Como se uma
criança ao ser entrevistada pudesse dizer mais de seu mundo que o texto que
ela, eventualmente, pudesse escrever.
O que Derrida irá apontar é que
a escrita diz algo da esfera do desejo, dessa clareira ao re-significado, que a
meia-dúzia de intenções e interpretações que possamos deduzir do estudo
normalizado vindo das ciências, a sociologia sobremaneira, não poderia
substituir como via compreensiva. Aliás, que estas emudeciam estrategicamente o
não-dito.
Ao invés da essência do
texto, da sua intenção oculta, metafísica por assim dizer, a desconstrução visaria
a diference.
É curioso que a própria
palavra différance, como Derrida a redige,
está cunhada de forma errada — dado que o vernáculo é diference.
Explico.
Explico.
Considerando que sua
pronúncia (correta) acentua o vocábulo “a”, o jogo que a abertura possiblita é,
justamente, suprimir o que lhe dificulta o acesso (na escrita incorreta).
Ou seja, é preciso suprimir o “e” do différence para, ironicamente, apontar o que aparece com sua desconstrução: a palavra trans-crita, ou trans-criada (o Outro, até então silenciado) que se dá na fala.
Ou seja, é preciso suprimir o “e” do différence para, ironicamente, apontar o que aparece com sua desconstrução: a palavra trans-crita, ou trans-criada (o Outro, até então silenciado) que se dá na fala.
Fica evidente que a
desconstrução derridiana está em função, eticamente, do que faz emergir, do
disparo de novas inventividades até então mudas. A ironia, constante da
supressão do vocábulo “e”, está, em que toda vez que não investigamos estabilidades
do grande texto do mundo o que há é supressão; impossibilidade, mutismo.
Em outras palavras, a escrita
da palavra diferença (no francês) escondia uma hierarquia de dominação com um
determinado aspecto inter-textual, no caso, entre a escrita e sua respectiva
pronúncia. Esse hiato é o que Heidegger chamaria de clareira do ser (texto).
4.
“O
que foi tranformado em outro?”, eis a questão. O que, pela sedimentação
histórica dos preconceitos convergiu para o silêncio?
Derrida então vai atrás do rasto do que foi silenciado, e como
Heidegger abole o homem com seu ser-o-aí (dasein),
o projeto derridiano é expandir a desconstrução para o domínio
macro-estruturante da escritura; esta agora anda de mãos dadas com a diferença.
Para
exemplificar, peguemos como exemplo a palavra “mulher”. É difícil criar signos
fora do campo adstrito ao imaginário colonizado pela tradição deste vocábulo. A
escrita da palavra, sua hegemonia textual por assim dizer, funciona como
barreira operativa. Só um filósofo treinado no estruturalismo clássico poderia
ver que quando uma estrutura lexical se consolida como “ordem do discurso”,
isto é feito para a estabilização do imaginário moral daquela sociedade, e sua
ordem (hierarquia). Exatamente como um mito quando disciplina a maneira correta
de interpretar uma gravidez, por ex. A palavra “mulher”, dessa forma, está
investida de relações de força, em linguagem nietzschiana.
Para
Derrida, o rasto que conduz a
estabilização da palavra “mulher” está calcado na linha do consentimento dado,
e só aparentemente consensual na sociedade que adota a expressão como corrente,
e de forma latente como dogma (pressificando as relações de força em luta). E
este consentimento é da ordem do desejo,
o que afasta a desconstrução derridiana da análise
do discurso enquanto identificação do percurso do recalcamento.
É, noutra via, a da relação
com o desejo, bem como a manifestação deste, e no contexto da experiência
homem/mulher, que tal deverá ser problematizado. E o que estaria supostamente
estável, pelo insuspeito binarismo, agora é anulado, desconstruído, já que suas
condições de fundo são elas mesmas ilegítimas para designar o que vem a ser mulher numa sociedade pretensamente
igualitária.
O rasto, neste caso, é o desejo ancestral do homem que faz, no
interior da escritura-mulher, a reinscrição da “carne da minha carne”, portanto
propriedade pessoal, que é estendido historicamente ao Adão bíblico, que tem
seu espectro metafísico na tradição judaico-cristã, insuspeitamente incrito em
sociedades laicas.
Obviamente que após dois
séculos de estudos de gênero esta análise é quase pueril. Mas pense em sistemas
de linguagem como o direito, a medicina, a tecnologia. Pense nos bloqueios
desejantes a que tais linguagens, sob a forma do pre-conceito sedimentado,
legam com neutralidade nas relações que estabelecemos com o mundo: pense, em
suma, numa crítica da razão teológica
no interior de nossas textualidades contemporâneas.
O que ressalto é que a
ciência de modo geral, entre outras maneiras de capturar o real, sejam apenas
artifícios para domesticar o desejo, objetivando instabilidades e conflitos
como verdade, justiça, conhecimento etc, tudo, absolutamente estável.
O projeto moderno está,
justamente, em silenciar o imaginário que pode ser trans-criado pelo outro,
quando este tem sua linha de fuga do desejo dada na desconstrução. E, não por
acaso, a partir da perspectiva que libera o desejo reprimido na história de uma
determinação ocorrida antes na escritura, então desconstruída, pode-se fazer da
verdade biológica mulher — inquestionável — agora em instável construção social.
É daí que a polissemia das relações “inter-textos”, até então exclusivos na
heterossexualidade homem/mulher, é estilhaçada em múltiplos textos-gêneros — e
possibilidades.
5.
Se
o ser é o texto, como falar em método para desconstruir binarismos, aparentes
estabilidades ou a metafísica que opta pelo real, a metafísica da presença.
Como fazer com que o pesquisador ao se deparar com seu campo de pesquisa veja-o
como texto. E, dessa forma, opere suas questões dentro de um quadro comum de
sinalizações-escopo. Táticas. Guias. Roteiros para a desconstrução.
a)
Privilegiar
técnicas de pesquisa que vão ao encontro de descrições textuais. Etnografia,
entrevistas abertas, otobiografia, escutas, história oral etc. O primeiro passo
é densificar relatos, narrar cenários como eles se dão. Não é descaminho, nessa
etapa, correr paralelo à fenomenologia desde que a pesquisa não fique aí
tão-somente, nessa descrição densa. No “olhar distanciado” dos antropólogos.
Fazer isso é incorrer em dualismo, dessa forma, resvalar em metafísica.
b)
Identificar
os binarismos, o bom senso consensual acerca do tema, elencar aporias entre
teoria e prática, perguntar-se e redigir às questões que você, como
pesquisador, propôs aos pesquisados (e, não incorrer, nessa distinção
qualitativamente). Problematizar o conhecimento especializado com o
textualizado por você. Destacar normalizações, preconceitos históricos,
generalizações conceituais. Questione a própria existência do seu objeto.
c)
Em
seguida, inverter todas as ordens dadas no campo. Por exemplo, “crianças com
pais divorciados têm baixo rendimento escolar”: a questão não é saber o por
quê, entretanto, em que situações sociais questões como essa são suscitadas e a
fim de qual contexto que não aparece, ou são anteriores, à colocação dessa
pergunta.
d)
Seguir
o rasto do desejo que está no interior das narrativas. Criar novas
hospitalidades a termos gastos. Não se trata de psico-analisar os textos, mas
de perseguir eticamente o caminho que “destrava a língua” a emudecer o
não-dito. Nessa altura, é interessante o ferramental da psicanálise aos grupos
que são pesquisados: um domínio sobre teoria dos instintos e metapsicologia são
oportunidades para a analítica desconstrutiva. A desconstrução enquanto método,
insisto, não deixa de ser uma analítica, e descrever assim é elemento crucial
para densificar as problemáticas e aberturas. Sobretudo denunciar linhas de
fuga ao que foi construído pela ruptura. O texto-pesquisador deve conversador
com o texto-campo. É nessa relação inter-textos que o desejo deve ser
trabalhado.
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