A Primavera Gloriosa: texto alusivo à solenidade de colação de grau dos Aspirantes 2017 PMMT
Nobres
Aspirantes da Polícia Militar,
A
força policial mato-grossense atingiu o ponto vértice em sua história até aqui,
isto é, ou se repensa ou estaca inexoravelmente. That’s it, diriam os americanos.
Tal
consideração é imperiosa, pois não há notícia acerca de fatos como os de então,
tampouco, a penetração de manchetes, umas tênues, outras substantivas, sobre um
sem número crescente de personagens a não poupar círculo. Oh tempora! Oh mores! Clamaria Cícero de punhos cerrados...
Enfim.
Pior que o gosto amargo da avaliação, o cálice repetitivo. Deste, retrato-me de
antemão pela suspenção antes que o claro-escuro erga-se novamente e
observadores como este neófito deixe de ver com inverno na alma o que hoje
primavera, pois a maturidade de uma instituição, digna de grandeza, pode ser
medida pela capacidade de autocrítica de seus membros. Sobretudo: a certeza que
uma Instituição como a Gloriosa dos que passaram, passam e passarão por ela
indefinidamente, não se identifica jamais com qualquer um destes. Feita as
considerações, sigamos.
*
O
ano é 1835 e a polícia militar está sendo criada (Lei n. 30, 05 de setembro).
De uma meia-dúzia de caboclos curtidos no sol inclemente, braços do escravismo
colonial, homens do mato, nasce o que seria hoje uma instituição fruto do
iluminismo, moderna mas visceralmente arcaica. E por quê?
Acima
de tudo, porque uma parte ínfima das forças sempre fora mera instância do poder
constituído, ou melhor, braço armado do “patronato local” (Como ressaltaria
Raymundo Faoro em “Os donos do poder”). E não refiro-me a ordem democrática
esculpida nas leis e seus agentes representados no interior de uma subordinação
vertical.
Do
contrário, uma organização por momentos a depender de grupos onde plasmava-se
no poder, convertendo-se, por vezes, na milícia de proteção e informações do
exercício mandatário, pouco importando o Estado, mas, fundamentalmente, as
pessoas diante dos quais repousava a representação. E ao modo de comensais
benfazejos, fez-se, em tristes oportunidades e sem generalizações, da
proximidade com a decisão a ponte para um culto a personalidade. Com a
garantia, pelo lado mais fraco, do usufruto econômico da comensalidade, pelo
lado mais forte, do poder mantido a fórceps, sempre insciente dos meios mas
cônscio dos fins em calculado laissez-faire político.
Tinha-se,
dessa forma, em parte uma organização a serviço do “estamento burocrático” e
ocasionalmente, se preciso, até contra a sociedade civil. Dera-se assim
duplamente: na república velha, durante a Era Vargas (basta lembrar de Filinto
Muller) e, entre 1964 e 1985, em que confrontados com o regime constitucional
naquela altura secundarizado pelos AIs, optou-se seguir o estamento dirigente
na batuta das Inspetorias Gerais de Polícia e, consequente, diretamente da
extensão do mando a despeito da soberania popular.
Nesse
cenário, são estabelecidos os gabinetes de assistência a esse estamento e toda
uma elevada maquinaria de serviço que, além da segurança legítima, prestou sob
os mais distintos carizes apoio às autoridades, que transitava de uma espécie
de vassalagem consentida (lembre-se do icônico Gregório Fortunato), a-técnica,
até a perpetração ambígua de atos que a história não desmente, a destacar, o
campo do policiamento velado, que, oposto ao vento democrático veio a
sedimentar-se em triste memória: do famigerado DOPS de Fleury às pedois
(serviço reservado) Brasil afora.
Esse
seria, grosso modo, o macroprocesso de estruturação da força policial
brasileira, cuja gênese, seja por meio dos bandeirantes paulistas ou dos homens
do mato é, ao fim e ao cabo, bastante similar. Ou seja, filhos bastardos do
militarismo anterior (portanto, inacabado) à profissionalização levada a termo
pelo Gal José Pessoa, a partir da criação da Academia Militar das Agulhas
Negras (AMAN) em 1944, tendo como marco principiológico a cisão com o partidarismo
político e a cultura intervencionista; que experimentaria, lembro, uma recaída
em 1964 apenas para confirmar o que o saudoso general alertava... A despeito,
continuemos.
*
Os
últimos trinta anos viram florescer as defensorias públicas, o atuante ministério
público, a criticidade tenaz da explosão universitária que seguiu aos
caras-pintadas, o alvorecer das liberdades individuais e dos direitos humanos;
tudo isso, com seus erros e acertos, excessos e ideologias, que se frise bem.
Siamês
a esse processo, insisto que a modernização dos métodos e procedimentos
advindos do neoconstitucionalismo de 1988, e sobremaneira da economia pós-Real,
exigiu das instituições andamento congênere, cada vez mais impessoal e
técnico-legal; mais pragmático quanto ao bem-comum e sem apego à dinastia dos
cargos, a nobreza de sangue e ao bacharelismo; totens da velha república.
A
administração por resultados, dogmatizada desde Bresser-Pereira, tinha chegado
ao Brasil e para tal as instituições mudariam e, mudaram, mas a maioria delas,
somente na superfície, ou melhor, naquela lâmina d’água que as permitiu
sobreviver ao crivo social, da imprensa à opinião pública protestando por
“serviços públicos de qualidade”.
E,
apesar de toda essa redemocratização de formas e procedimentos, são às polícias
que mais lentamente vêm se adaptando verdadeiramente. Em débito não à exigência
técnica e formal dos protocolos de língua d’água, por assim dizer, entretanto,
na cultura organizacional resquício do imperialismo, recôndita e valorativa. Esta,
sob a proteção daquela, permaneceu quase intocada por mínima; enraizada em
fiapos no verniz da aparência.
Em
síntese, para fora as polícias de modo geral modernizaram-se, para dentro,
naquele minúsculo e residual ambiente cultural e estruturante, pouca coisa
aconteceu.
A
reboque desse macroprocesso quero ligar o microprocesso de constituição
institucional da nossa PMMT, que deu-se não em caráter totalitário e
generalizador, mas em medida pontual (não obstante, considerável). Vejamos.
*
Em
1993 ocorre um evento que acelera a profissionalização da PMMT, a ativação da
Academia de Polícia Militar Costa Verde (APMCV), unidade em que é formada a
elite cultural da instituição (em um atraso de quase meio século em relação a
AMAN). A própria criação da APMCV é demanda da nova República, dos ideais de
aprimoramento da gestão que só é possível com uma identidade sólida (missão,
visão e valores), padronização técnica e estabelecimento de modelo e
continuidade. Busca-se, assim, um perfil de acordo aos desafios da redemocratização.
Noutros termos, a fundação da Academia é, usando a ilustração convencionada
antes, a mudança de superfície, porém de excelência, de uma polícia em vias de
adaptação ao contemporâneo.
Na
vanguarda desse microprocesso, é preciso dizer que entre recuos e afastamentos,
os avanços de caráter técnico-burocrático são inquestionáveis, da manualística
à informática, do treinamento à inserção social. A polícia militar, com efeito,
passou a operar segundo critérios maciçamente gerenciais, e também com erros e
acertos, a polícia comunitária é instalada ainda nos anos 90 e atividades de
emprego e ação são elevadas a níveis de excelência nacional, como as de
operações especiais, de patrulhamento tático e o próprio ensino então
reconhecido superior no sistema civil. Repito, tudo isso, com seus solavancos
intra-corporis, não lineares e unânimes, porém sempre contínuos. Digno de nota
também que, em boa medida, as gerações formadas na APMCV são as responsáveis
por um sensível vetor de democratização nas leis e regulamentos da carreira
que, não isenta de críticas, ampliam o acesso ao topo trazendo aos seus membros
uma remuneração condigna à posição de decisão no Estado, como ainda, a desarmar
a própria capa de mudanças apenas de superfície. Mas, antecipo-me demais nesta
altura.
*
No
interior desse microprocesso de evolução técnico-burocrática, um porém: pouco
mudara quanto à residual cultura de profundidade. Macro e microprocesso se
acoplam em correspondência sem, contudo, questionarem valorativamente suas estruturas
de base, a saber, sua cultura de grupo, primária e fundamental. De forma
análoga, como descoberto pelo Exército somente ante a recaída de 1964, a
cultura intervencionista (também de grupo e primária), de matriz política,
ainda morava nos corações dos cadetes, futuros generais (a despeito da
universidade militar de Resende, desde 1944, movendo na superfície os ideais
contrários).
Assim
sendo, retomando nosso caso, a dominação tradicional-carismática exercida pelo
estamento burocrático desde o império português ainda persistia com alguma
regularidade, e claro, de mãos dadas à contrapartida do acesso e da posição
honorífica. E, com o desenvolvimento desse microprocesso, a evolução técnica
chocaria-se ora com o desejo nietzschiano, este, na maioria dos casos, borrando
a fronteira ética, e geralmente, a qualquer preço. Veja, não foi diretamente
pelo vil metal o que fez escandalizar a moral média nos sites e na TV a exigir
“comissões da verdade” (por ex.), mas o prazer do status e da permanência no
cimo das decisões que o garantiriam numa via indireta, mas visada adrede, e que
tornava a violação penal, algo soft, quase “politicamente correto”; por amor
(pois, “tout comprendre c'est tout
pardonner”). De maneira que, o poder para ser exercido, como sabemos desde
Foucault, precisa ser plástico, microfísico.
Concluindo,
aponto desde o início que há um macroprocesso de constituição das forças
policiais brasileiras que vai do astuto bajulador, xucro (à la Paulo Honório,
de Graciliano Ramos), ao tecnocrata carreirista (à la Julien Sorel, de
Stendhal), e a reboque disso, o microprocesso na Gloriosa. Isso, sem qualquer
pretexto para generalizações, reitero. Ressaltei que esse processo local,
micro, encontrou seu ponto-vértice na residual cultura organizacional que sempre
existiu, em maior ou menor grau, a despeito das mudanças de superfície, que
foram, até em alguma medida, o meio pelo qual essa cultura se manteve; em
licença poética: como um vírus renitente. Desta feita, com um disfarce
idealizado, Constitucional.
Não
por acaso, esse ponto-limite convergiu em dimensões surreais em inúmeras
instituições públicas e privadas, as principais, Petrobras e JBS. Em outras
palavras, a cultura carcomida, viral, preenchendo juntas e medulas tem sido
expelida de um organismo que não a suporta mais; fato inconteste que não é
“privilégio” da instituição A ou B, muito menos de uma Instituição Gloriosa com
quadros e Comando fiéis com a própria vida ao Servir e Proteger. Essa,
Aspirantes, é a polícia real: aquela que às portas do bicentenário de serviço
prestado tem honrado este Eldorado e todos os que aqui moram.
Isto
posto, vale algumas diretivas para uma mudança que atravesse finalmente a linha
d’água rompendo de vez o que nos impede o crescimento. É o caso da reinvenção
da cultura, no caso da Gloriosa, sob novos marcos. Mas, isso é matéria para
futuras colações de grau, como uma reinvenção da elite cultural e,
incontinenti, de não deixarmos morrer a Academia de Polícia Militar Costa
Verde.
Gabriel Leal
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