“Aqui, a gente consegue trabalhar”: Ou a cabeça do educador brasileiro
A frase que dá título a este texto é de
uma professora da educação básica em Cuiabá-MT (a matéria é do site OLivre, em
24.03, link abaixo), a autora ainda complementa “aqui, a gente tem essa retaguarda,
a gente cobra e vê o resultado”. Na mesma reportagem, a jornalista faz
referência ao número crescente de professores que desejam trabalhar nesse “aqui”;
cita ainda, como contraponto, a fala de um sindicalista que aponta esse desejo
crescente dos professores em estar nesse “aqui” como consequência do “nenhum compromisso
com as situações adversas ao cenário perfeito”.
Deixe-me esclarecer os termos: o “aqui”
que nos referimos é a escola militar. E a ausência de compromisso, esse tal “nenhum
compromisso”, mencionado pelo sindicalista, diz respeito à exclusão social de
boa parte de alunos às escolas militares e que leva, visão sua, ao suposto “mundo
idealizado” que “até eu, que sou bobo, de repente, gostaria de trabalhar (...)”,
palavras do sindicalista.
Apenas nessa meia-dúzia de frases soltas,
parte a parte, poderíamos escavar as raízes do maior problema da educação
pública no Brasil, a saber, o que entende o educador brasileiro ser seu papel
em sala de aula. Na verdade, a visão que este professor tem do seu dever
profissional. É isso que quero tratar, sem o pressuposto da palavra final na área,
nas parcas linhas que seguem.
Há dez anos, quando iniciei o mestrado em
educação numa universidade pública, o primeiro livro que me passaram como lição
de casa foi “pedagogia do oprimido”, de Paulo Freire (1921-1997). À época eu
era só um rapaz latino-americano com vinte e poucos anos tentando entender a
realidade educacional brasileira, e consciente da péssima qualidade da nossa
escola pública, mergulhei em toda obra freireana — e quando digo “toda” é toda
mesmo, a despeito até dos meus amigos que mais diziam ter lido do que, de fato,
leram mesmo (bom, isso é outra história).
Foi lá, no corpus freireano, que eu me deparei com os conceitos de “consciência
ingênua”, “educação bancária”, “inédito-viável”, “dialogicidade” etc. Todos
estes, conceitos aliás muito interessantes, tem base filosófica em
fenomenologia e dialética hegeliana. O pensamento pedagógico freireano veio a
ser categorizado por seus seguidores como “pedagogia libertadora”; vale
lembrar, programas inteiros de pós-graduação seguem essa linha como que numa
espécie de “igreja teórica” onde o deus é PF (cuja barba e fala mansa até
lembra um líder messiânico). “Libertadora”, em Freire, no sentido de libertar
os atores do processo educativo (professor/aluno) das opressões sócio-históricas,
produzindo, num diálogo libertador, “consciência
crítica”.
Do principal, veiculava-se ali, não
qualquer tecnicismo ou um saber-fazer que deveria ser implementado na escola:
mas um meio, apenas uma trilha, para a revolução política socialista; a prática
(práxis, como se diz na igreja)
pedagógica resume-se, na pedagogia libertadora, no ideal de autonomia política.
Essa ideia hoje banalizada de “ato educativo como ato político” tem nos
escritos de Freire seu suporte — diria até tratar-se de uma paráfrase mambembe
de qualquer um de seus livros.
Mas, nem só de Paulo Freire vive a
educação brasileira. Temos também os “savianistas”. Quem são? Onde vivem?
Savianistas são aqueles que seguem a
orientação teórica do grande pedagogo Dermeval Saviani (1943-). Em todas as
obras desse pedagogo nascido no interior de São Paulo e que fez carreira na
PUC/SP (onde criou o doutorado) o objetivo da educação era “transformar as
relações de produção”. Saviani estava menos preocupado com a consciência dos
atores e mais com a escola enquanto franja de uma espécie de aparelho
revolucionário. Saviani, por assim dizer, era mais técnico quanto aos
objetivos: saber “o a quem interessa?” dos conteúdos escolares e torná-los,
dessa forma, racionalizáveis aos alunos. Para Saviani o X da educação estava em
desmascarar as superestruturas de poder no conhecimento. Não se trata,
portanto, de fazer uma “ciência histórica” mas de criticizar a séria de porquês
que fizeram do conteúdo escolar da história ser o que é. Daí, buscar fazer-se
história-crítica antes de ciência histórica: note assim o papel do método
mobilizando o saber. A escola de pensamento savianista tem nome: pedagogia
histórico-crítica.
Você sequer imagina mas o seu currículo
escolar leva muito desse pensamento. A produção das ementas servem, ao fim e ao
cabo, para por em relevo o jogo de contradições que o conhecimento carrega em
seu interior, para que se projete, na cabeça do aluno o jogo das contradições
que existe na própria sociedade; pois se há interesse no que se diz ensinar, há
interesse e disputa também na sociedade. Bingo. Está instalada a “luta de
classes” como método de compreensão da
vida em si. Faça o teste: digite “democracia racial em Gilberto Freyre” no
google. E você vai descobrir que para cada pesquisa acerca da democracia racial
em si existe no mínimo dez para “o mito da democracia racial”. O savianismo
busca a crítica da crítica (conhecimento).
Tudo o que vem a partir daí na educação
brasileira é apenas dégradé dessas duas escolas pedagógicas — e isso não é
nenhum exagero. A educação passa a ser um imenso aparato de transformação do
mundo, com orientação político-ideológica. Na cabeça de boa parte dos educadores
(sobretudo os radicados na escola pública) menos importa se o aluno adquirirá
competência para conhecer as coisas nelas mesmas, a realidade, do que se ele
saberá no seu entorno e no próprio ambiente escolar criticar o sistema; a
começar, por vezes, pelo próprio “patriarcado na família”.
O professor sairá dessa forma da sua
limitada esfera de responsabilidade, que é escolarizar, para militar por um
projeto de mundo melhor. Mais até. Por uma sociedade mais justa e igualitária. O que
se ensina, em regra, passará pelo filtro da consciência crítica que se quer
inculcar: aquela consciência militante que olha para as condições estruturantes
antes de aprender a ler, somar ou multiplicar. De modo geral, parcela
significativa de nossos professores, foram preparados para serem mais revolucionários
do que profissionais técnicos, cujo mister é implementar e gerir competência
instrumental a seus alunos.
A escola pública brasileira padece então
desse romantismo revolucionário anti-burguês que está enraizado na mentalidade
revolucionária. Nesse ethos de “ator
político” que, não raro, faz desses educadores responsáveis por aquilo que lhes
foge completamente ao desígnio em sala de aula: que é ensinar. Pois, quando um
professor busca interferir diretamente no sistema social ele faz a despeito daquilo
que é pago para fazer estritamente; logo, em clara oposição ao que se espera
dele. De maneira que, se o que os pais querem é que seus filhos sejam
preparados para o ENEM ou para o mercado de trabalho, estes os titulares
da educação de crianças e adolescentes, não caberá jamais ao professor ter uma
aposta diferente; do tipo conscientizar a comunidade escolar das contradições
do “mundo idealizado”.
As escolas militares têm funcionado bem
Brasil afora por um motivo muito simples: resgata o para quê de uma escola
digna desse nome: “Aqui, a gente consegue trabalhar”. Resgata a autoridade
desse professor a fazer o que foi chamado a fazer: ensino-aprendizagem. Resgata
o sentido primordial: que a educação é um esforço da família e não um campo de
engenharia social controlado por mestres da revolução. Resgata o papel
fundamental da escola, que é não substituir os pais mas oferecer componentes
curriculares com neutralidade axiológica — sim, isso é possível, e tem um nome:
ciência. No Brasil, as ideologias “libertadora” e “histórico-crítica” podem até
terem apeado do poder mas ainda residem profundas em mentes e
corações. Por fim, não se trata de fazer a "escola sem partido", mas com abertura para todas as cosmovisões (inclusive, a exitosa, militar).
Gabriel Leal
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