ASSIM NA TERRA COMO NO SOL (NO PRELO)
Este é o primeiro trecho que divulgo do romance que irei publicar em homenagem aos 300 anos de Cuiabá, minha cidade natal. Trata-se de um "hino à terra do fogo", com seus dramas e contradições.
1.
Seria impossível imaginar que debaixo
do asfalto pontilhado como um queijo suíço se escondesse três séculos atrás o
mítico Córrego da Prainha, a manjedoura de Cuiabá. Das mãos que recolhiam ouro
à superfície em meio a cristais via-se agora só concreto armado engolindo nascentes,
histórias tribais entre carros engarrafados com mil sóis para cada pedestre no caminho
do ônibus, idas e vindas anônimas no centro-oeste da América Latina.
Reflito isso suado, gasto do
meio-dia num leve transe, no sopé da Igreja do Rosário, escangalhado num banco
sentimental, contando o número de frustrações sem um centavo no bolso. Gosto
daqui porém; dessa antiga Igreja, meu objeto
no mestrado, dessa praça sob o morro de onde se vê uma parte do centro velho. Com
suas vielas coloniais de pedras soltas, semiparedes enegrecidas por tapetes de
lodo, grandes tramelas de aço e singelos casebres ressoando amores medievais, lembrando-nos
caldas de vestido, fraques e torrões de doce em louça desenhada. Com imponentes
portas empenadas e abauladas por grandes arcos, intimando ancestral reverência.
Eu olho piscando fundo, com a espada do sol atravessada, tudo ali,
despido de cores e da vida pulsante, e a olhares profanos, inspirando abandono,
urina e contravenção policial. Com ambulantes de drogas e bicho pretextando
eletrônicos; vendedores de cartelas mágicas, velhas e garrafadas milagrosas,
sobretudo, a rota do carteado depois de sinistros corredores ensombreados, tomado
por cabeças brancas e homens de peito nu.
Por falar em bancos de sesta, um pouco abaixo de onde me encontro
seguindo a av. da prainha, lá pelos anos dois mil, era outro meu recanto de
estimação no finado terminal da praça bispo dom José. Naquele vaivém suado e
cozido, namorava uma surda-muda linda, aluna do Liceu, que conheci por lá entre
os mudinhos — modo de dizer ao qual ela me civilizou posteriormente, e do qual
despenco hoje por sua falta. Lembro, até aprendi libras antes de desbravar a
região do Coxipó onde Elisa morava, nos limites da zona sul cuiabana. Aventurei
ao Tijucal atrás daquela morena de coxa grossa, e num moto-táxi tomado errado
dei de cara no Pedra 90, à noite, faixa de gaza nessa época, para sofrer um
assalto e dois ou três passa-moleque requerendo evasão e enfermaria, assim fiz,
pra sumir de vez.
Isso pouco interessa agora, e me rio disso debaixo desse sol devorador,
passado tanto tempo e nada mudado por aqui, vãs expectativas numa cidade que
asfixia sonhos. Nunca quis sair dessa brasa viva até entender as tramas de cada
nó dessa forca de vocações frustradas, desse labirinto que encerra ambições
honestas e reitera geração a geração o que um grupo regala, ao manter tudo
inalterado. Mas isso soa rancoroso demais, creio que exagero até. Pudera,
talvez seja o sol. Acabo de chegar de um emprego perdido e a vaga de história
regional no preparatório levada por outro sujeito, porém sem mestrado — foda.
Talvez eu deva levar a sério os conselhos de Ana e ir embora pra São Paulo
buscar o doutorado. Viver de bolsa corrói minha autoestima porém;
principalmente, se for numa cidade desconhecida, longe dos amigos, dos meus
lugares, do meu povo e desse calor que me envolve. Mas, às portas fechadas resta-me
só a diáspora rumo aonde se diz não existir amor, e deus, apenas uma nota de
cem reais — como repete o clichê.
Meu pai nunca deixa esquecer que “você não vai achar um cuiabano fácil
por aí, de andação mundo afora”. Como se fôssemos enraizados nessa terra de modo
irreversível tornando geografia corpo, além de substância afetiva de nossas
ideias e memória; um parentesco profundo com essa ancestralidade ribeirinha,
fiéis ao rio, ao peixe, às festas e danças. Presos no tempo desse mundo
próprio. Penso que há uma maneira de raciocinar estando nesse sol, neste banco,
debaixo desse tamarineiro estalando frutos pelo chão, olhando ao longe aquela
velha cuiabana aguando plantas no seu alpendre apertado de vasos, provavelmente
mascando fumo pelo movimento em falso da boca, desejando discrição e foco,
planta a planta, raízes e folhas beijadas com as falanges. Os sentimentos que sempre
privei boa recordação guardam a moldura da av. getúlio vargas com a isaac povoas,
daquele lusco-fusco dos carrinhos de lanche, da iluminação manteiga e seus
muitos pontos de enunciação biográfica; ou da Chapada dos Guimarães, e a
vacuidade opressiva de seus precipícios; da rodovia da morte roçando imensos paredões
de sal do que um dia, dizem, foi mar; dos inúmeros festivais de inverno em que
estive debaixo de garoa num paradoxal cinco graus, a despeito do calor e do
mormaço angustiante sessenta quilômetros abaixo, em cuiabrasa. Até dos tristes
galhos retorcidos contornando as franjas dos bairros; dos dias de cinza e fuligem
em que a cidade queima no hiato entre semanas de aguaceiro e a chuva da manga,
solitária e furiosa pós-agosto, lembrando-nos da primavera mesmo arrasados em
pó.
André, sempre lembra mamãe, “toda nossa família é daqui meu filho, o que
você vai inventar longe, tem tudo em Cuiabá, larga de besteira”. Não emulava
debates nessa altura, pois o silêncio guarda as melhores respostas, dizia
Borges. Ana, esta sim me encoraja sempre, embora saia daqui de vez em quando
quinze dias por ano nas férias da escola onde é professora, ciosa de seus
deveres, neurastênica de responsabilidade “André, meu irmão, você tem asas, então
voe, vá estudar em São Paulo, no Rio, até fora do país se der”; diz sempre
olhando dura pra mim num desses sábados vagabundos que me topa lendo Josué
Montello na cadeira de fio na varanda, com meu destroçado exemplar de romances
escolhidos, pra lá e pra cá.
2.
Deixe-me apresentar minha família. Meu pai vendia frutas na rua ainda
menino. Sem alguém que lhe calçasse os pés conhecera chinelo somente aos doze
anos, repete sempre ao reforçar uma ideia. Do tempero salgado na banha de porco
no pantanal onde nasceu, herança da sesmaria de sua mãe Feliciana, filha de
escravos, o caçula entre muitos irmãos cresceu desprovido da afeição
confortável daquela mulher de cabelos brancos e do pai de olhos claros morto
quando o menino mal tinha aprendido a falar, errante retirante do Maranhão,
obscuro de passado. Das irmãs bem mais velhas curtidas na angústia anual da
espera de seguidos partos passou de braço em braço, dos irmãos e primos broncos,
do meio hostil às modulações do sentimento recebeu mínimo esforço do afeto,
certamente ainda sem o amor que a miséria retira do trato e o hábito reforça
com a dureza dos modos; da frieza ante a dor e da ignorância rude. Afetos refinados
em limalha de aço.
Com uma meia-dúzia de princípios mensurados pelo trabalho como preço da
dignidade, da palavra sem volta, do respeito à autoridade e aos costumes
estabelecidos, dum incerto orgulho de família, não foi fácil crescer no
espinhal cuiabano pré-urbano depois que ele deixou o mato, continuando assim
doze anos de uma vida sem esteio, sem amparo algum. Da sesmaria, interior de
Poconé, riscado pela transpantaneira e suas centenas de pontes rotas submersas
por uma lâmina d’água, da pedra canga, das jaguatiricas de estimação e dos
infinitos jacarés, ele guardava no peito sua formação como um tesouro pessoal
apesar de tudo; indevassável pela impureza urbana e redivivo sempre que
retornava às suas raízes, tratando os animais e a roça de milho ou mandioca,
plantando pasto; no banquete domingueiro na varanda da velha casa de adobe onde
sentia a mãe, como também repete volta-e-meia, e tinha retalhos de memória do
pai; do valente irmão José que, para os mais velhos, foi assassinado na rotina
das brigas em que se metia, aos meninos porém, morto de doença do coração. Pela
noite, ao som da fogueira crepitando causos, risos e irônicas dores espantando
mosquitos, a me comover transfigurado o homem e seu idioma naquele mundo
sertanejo, irreconhecível mesmo a mim, seu filho. De pé, ele se perdia no
silêncio musical da mata enquanto eu buscava em vão a leitura de seus olhos, e
seus milhões e milhões de pensamentos, que só o canto dos pássaros ou as folhas
torcidas pelo vento poderiam segredar em diálogo cifrado. Todos mudos a mim
contudo, sempre atrasado quando perto do seu coração selvagem.
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