Duas palavras sobre sofrimento (*)
Há momentos da vida em que o melhor a
fazer é emudecer e virar uma pergunta. Buscar no silêncio e na oração o que o
absurdo, na sua absurdidade, quer nos ensinar. Refletir mil armadilhas, traições
e trapaças, hipocrisias, maldades e todo rol de injustiça a nos torcer de
angústia às duas da manhã. Louco em um caleidoscópio de culpa e solidão, cabeceando
as paredes do labirinto.
Foi nessa travessia em meio a
instrumentos de corte que eu estive por esses dias, num relento de vendaval, na
inglória escola da sabedoria que é o sofrimento. Muitos perguntavam se eu
tivera adoecido devido a perda repentina de peso. Emagreci. Mas não foi na
balança somente, quisera fosse, pois foi na alma primeiro, uma sequidão infinda,
um estio de carcaças e terra seca, com areia de aflição nos olhos, um chocalho
de serpente no ouvido e uma pressão de vagão apertando o peito como punho
fechado.
Parei de escrever com regularidade e
gosto, perdi a letra e a soletração da vida. Minha leitura ficara combalida e
cortada: desconcentrada e desconcertada por invernos na alma. Meu joelho ficou
desesperançoso — pra quê? —, a minha fé, como um fiapo cozido na lágrima,
bruxuleava tênue, pendular entre a descrença e o dente cerrado da vingança: à
espera daquele sopro derradeiro e seu apagar definitivo; esse “pronto” que
antecede o pior dos homens. Andei, de outubro pra cá, na corda bamba sobre o
precipício.
O problema maior não era, contudo, a dor
dessa caminhada e sim o mal-estar tomando o rosto com aquele ânimo falso para
alguma coisa além de ficar calado ou chorar — dado que o punk desse processo é
manter-se de pé, e produtivo socialmente, com o resto psíquico do que talvez
devesse ser usado na sua recuperação depois do desmonte mental. Porque,
diferente das feridas aparentes, aquelas que atingem a psique são invisíveis
aos olhos naturais, pois é possível estar todo quebrado apesar de um esqueleto
intacto e esbelto.
O tempo, diferente do que se diz, não
cura nada. Só Deus pode juntar milhões de cacos e fazer desse pó de vidro algo
novo. “Criar do nada”, essa é sua especialidade aliás. E já que eu, nadificado
pelas circunstâncias, humilhado, precisava ser colado e restaurado é que o Deus
da travessia fez-se ponte para o imponderável; como imponderável foram os meios
que me levaram até a ruína psíquica. E, curiosamente, sem minha participação as
coisas foram tomando rumos estranhos, mas aparentemente naturais. Fui recobrando
a força até adensar em remédio o veneno acumulado em minhas veias — veneno este
que me fora ministrado em cápsulas de amizade, cortesia e sorrisos benfazejos.
Fui incorporando assim as pancadas no meu couro endurecido, trabalhando ou
esquecendo traumaticamente cada ofensa até que consegui sentar no chão; devagar.
E, daí, levantar foi consequência de duas ou três aberturas de contagem no
ringue da vida. Ensaiei antes algumas rebeliões e emboscadas contra os fatos —
o que já era certa evolução depois de tamanha prostração. Mas fui aninhando o
perdão; entretendo rancor com misericórdia. Superando pela afirmação, sem
reprimir, devagar. Ganhei peso. Corri no parque e voltei a namorar o fogo após
o corpo malsão me comprimir como gelo durante semanas debaixo de dez cobertores.
Vi asssim que o mal é uma face do bem-maior a quem se destina olhar acima das
circunstâncias desta vida — e tomei minha caveira nas mãos como a olhar quem
fui, a-temporal, sendo quem sou hoje: filho do Eterno.
(*) Texto recebido de um amigo que preferiu não se identificar.
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