O Marquês e a Sapucaí
Um dos mentores da revolução francesa era um nobre que marcou nossa história, Marquês de Sade. No período de debate e rumos do movimento os revolucionários reuniam-se numa região de Paris chamada "Palais Royal". Tratava-se de um prostíbulo a céu aberto, que tivera sido criado bem antes por outro nobre, Felipe D'Orleans — um dissoluto inveterado.
Foi nesse ambiente que a revolução que tanto se louva foi gestada, era lá que surgiam os panfletos, era lá que o Marquês de Sade disseminava suas ideias não propriamente ligadas ao que pensamos hoje quando nos referimos à igualdade, liberdade e fraternidade (lemas da Revolução de 1789).
Sade, em síntese, era um apologista do estupro, do incesto e da total ausência de limites à vida instintiva. Toda forma de repressão sexual, para Sade, era uma forma de opressão que deveria ser superada. Não por acaso, com a Queda da Bastilha, e antes da decaptação, freiras e nobres passavam por violação das mais inomeáveis formas, do estupro à empalação.
Sade tinha um princípio filosófico por trás dos horrores que praticava: --- o prazer que alguém pode me oferecer é meu. O que me faz bem é direito inalienável. Logo, pertence à minha natureza ter aquele prazer que, em regra, pertence a mim ainda que estando ou a depender do outro. Não se trata, dessa forma, de violar ninguém mas de tomar aquilo que é meu; de restaurar um direito de bem-estar. Outro princípio de Sade era o experencialismo, que é mais ou menos o seguinte: “você só pode dizer se algo é bom ou ruim se experimentar”. Com isso, ele pregava que os tabus do incesto eram formas profundas de prazer (negadas pela Igreja opressora) que deveriam ser experimentadas, pois presentes em nossa natureza instintual (comuns na vida animal). Eram frequentes na Palais Royal de Sade esse tipo de “experimento”.
Em outras palavras, o outro --- como símbolo a ser revelado e respeitado na sua vontade humana --- é dividido, estilhaçado, pela vontade de domínio do mais forte que reifica pessoas em função da sua experiência de prazer; da sua entre aspas felicidade.
É preciso fazer, portanto, muito esforço para não perceber os dois princípios de Sade operando em nossa cultura hoje. Prazer sinestésico (sobretudo o sexual) como direito fundamental. E experiência como pressuposto para o julgamento racional. Existe, assim, na lógica do estupro um reconhecimento tácito desse prazer como direito e condição existencial. Associado a tal a experiência, única mediadora do juízo.
Desse modo, as velhas noções de flerte, paquera e coorte dão lugar a pura violência do ataque e do saque sexual, que são elementos do comportamento, dirá Sade, autônomo.
Concluir, dessa forma, que uma mulher pode ser violada em sua liberdade sexual passa pela interpretação di-abólica --- aquela que quebra o símbolo-Outro --- de que somos a medida de todas as coisas; de que nossa vontade de domínio não tem fronteiras exceto a força que lhe opera resistência. Que somos, em nossas relações de prazer, deuses em nós mesmos e para àqueles mais fracos diante de nós.
Nesse contexto, a sociedade se torna uma arena de sangue onde a vontade de domínio impera sobre padrões éticos e o respeito a humanidade do outro.
A sociedade, em última instância, é o palco da luta sangrenta pelo prazer --- disfarçado em alegria festiva. E, vale perguntar, não é esse o mote das festas onde "ninguém é de ninguém"?
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