O ateísmo cristão: Dostoiévski e a religião contemporânea
É preciso ler a parábola do “grande inquisidor”
de Dostoiévski com o sentimento de gravidade que ela intenciona, com seu olhar desarmando
o sono da fé ao atacar o nervo
hipócrita que corre furtivo no caráter cristão desde o início da modernidade. Pois,
em algum nível de consciência que aprendeu-se a esquecer, interessadamente, ser
cristão tem se constituído na perversa, e nem tão insuspeita assim, co-autoria da
morte de Deus — a mesma descrita por Nietzsche. O que remete a reflexão, dessa
forma, acerca de como a identidade cristã vem se acomodando no último século a
uma espécie burlesca de ateísmo, e com isso, fazendo da religião a instituição
político-terapêutica que formaliza a descrença mais profunda: a apostasia.
Na fábula do autor russo, Cristo retorna à
terra durante a inquisição espanhola no século XV, Sevilha, alta idade média e
período das grandes fogueiras. Na altura, após ser recebido com êxtase pelo
povo nas ruas que no dia anterior tivera presenciado a “purificação” de uma
centena de hereges, Cristo é preso pelo cardeal inquisidor que lhe acusa de ter
oferecido um grande mal para a humanidade: a liberdade, da qual, a Igreja havia
remediado com o contrabalanço dos dogmas e da aclimatação possível ao rebanho
despreparado para a vida grande, a vida da fé.
Insiste Dostoiévski que Cristo elegeu
homens e mulheres para a liberdade, mas um tipo de liberdade cuja abismalidade esmagou
a humanidade diante da contrapartida de responsabilidade exigida — alegação do
inquisidor.
E Cristo fez isso à medida que rompeu — na
leitura que Dostoiévski faz do Evangelho de Mateus cap. 4 — com a necessidade
do pão ao vencer o tentador no deserto. Por consequente, libertando todos seus
seguidores do imperativo da carne sobre o espírito; do imediato sobre o eterno;
submetendo, portanto, o pão que alimenta os sentidos à uma vida maior: a vida
do Espírito. O cristão ali foi chamado ao poder, mas sobretudo ao dever, de
substituir toda forma de genitalidade por uma espiritualização do sexo, em substituir
toda forma de prazer dietético por jejum perene — para ficarmos apenas com dois
exemplos que talvez sejam os maiores deuses dos anos 60 pra cá: o sexo e as
drogas. A fome e o prazer, os dois sinais da expansão da
vida, em rivalidade harmônica, são destruídos pela vida verdadeira, aquela que
vem na comunhão com o Espírito: pois nem
só de pão viverá o homem, mas de de toda palavra que procede da boca de Deus.
Diz Dostoiévski que a fé proveniente da
experiência miraculosa é o segundo grilhão rompido no deserto. Se abundam
sinais e prodígios nas páginas dos Evangelhos é porque aqueles que deles
necessitam são pobres de fé. O milagre, assim, deve ser rejeitado pela fé
autêntica. A verdadeira fé que é consciente do caráter peregrino de seu portador
e dos últimos grãos de areia na ampulheta do tempo que resta, desde a primeira
vinda de Cristo, toma seu destino como uma antecipação da Glória de Deus. Seu
amor é um amor que transborda qualquer circunstância, dado que nem a morte, nem a vida, nem os anjos, nem
os principados, nem as coisas do presente, nem do porvir, nem os poderes, nem a
altura, nem a profundidade, nem qualquer outra criatura poderá nos separar do
amor de Deus, que está em Cristo Jesus, nosso Senhor. Portanto, quando
Cristo refuta o milagre na segunda tentação narrada em Mt 4 o que ele faz é
inaugurar a vida que se martiriza, a vida que afirma toda vida sem por à prova o Senhor, seu Deus na expectativa
do milagre. Milagre é sinal aos incrédulos e manifestação da Glória de Deus e
não possibilidade da qual o Cristão pode lançar mão quando tentado.
Por fim, Dostoiévski irá dizer que Cristo
ao recusar a autoridade, o poder, informa a nós da responsabilidade de destruir
os altares em que podemos ser reputados, aplaudidos e mesmo adorados. Cristo ao
negar o que é seu (todos os reinos da terra), exige que nós, co-herdeiros,
também abramos mão. Poder, reputação, fama e glória: tudo deve ser destruído
pois somente adore o Senhor, seu Deus, e
preste culto somente a Ele.
Nessa altura não é preciso lembrar como o
cristianismo ao longo dos últimos séculos tem se convertido em mecanismo de busca dogmática por prazer estético (emocionalismo,
sentimentalismo, laxismo moral etc.), em esfera
de intervenção política na sociedade e mercado
de milagres. A morte de Deus, da qual fala Nietzsche, é um fenômeno gerado
no interior das diversas confissões que transformaram as três renúncias de Cristo
em fundamentos da fé. O sono da fé
advém da caricatura crida por muitos cristãos que, indesculpáveis, permitem-se escravos
quando deveriam viver verdadeiramente livres, para isso tendo que suportar por
vezes a fome, a condição de ralé na hierarquia social e a ausência de sinais
prodigiosos no enfrentamento aflitivo da vida (dado que o verdadeiro Sinal está
unido aos seus). O sono da fé é a
crença pessoal numa fé customizada, que se configura como verdade íntima ao seu
portador: nada mais do que um retrato de si mesmo; de seus achismos
transcendentais e preconceitos desapercebidos.
É provável, então, saltando o plano da
religião para a política, que os regimes totalitários que o séc. XX
experimentou nas figuras do nazifascismo e do comunismo, e agora, no séc. XXI
esboçam-se de novo com maior profundidade e alcance, sejam distorções da
escravidão auto-imposta, primeiro por essas formas religiosas, de juízos que
seguirão daqui para frente manifestamente desumanos, a operar pela extinção da
vida, sempre nua de qualquer significado além do pão (sexo, drogas e foods), da autoridade (vontade de poder
e money) e do mistério (comércio
milagreiro): a ração de nossos tempos. Se a religião aplainou o caminho ao
escravizar seus fiéis, sob consentimento no mínimo tácito destes, com formas de
vida inautênticas, será com a política totalitária mediada pelas redes sociais
que o juízo final se instalará — momento em que todos confessarão alguma forma
de espiritualidade sendo intrinsecamente ateus.
Gabriel Leal
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