Miragens noturnas






Sem ver nada à frente apenas escuto a chuva esmurrando o para-brisa da viatura, e com a borracha gasta do limpador riscando o vidro, tudo fica aflitivamente compassado e perigoso. O rádio fica num constante chiado, ecoando entrecortado vozes que somem na microfonia e seus irritantes agudos; espécie de antecâmara do inferno. Peço pro Silva encostar no posto à esquerda; são duas da manhã. Desembarco e o som da torrente abre sua garganta de vez sobre nós, agora retinindo na cobertura de metal do posto que parece amplificá-la, com baques sucessivos no arrasto do vento insidioso levando pedaços de outdoor. Ergo a voz para pedir uma coca-cola assim que empurro o blindex da conveniência. Por detrás do balcão gelado uma mão estende a KS recém-aberta; espocada alto. De soslaio, vejo numa mesa ao canto uma bota longa, preta, encimando uma meia-calça fina entre pernas cruzadas e um queixo erguido que está oculto pelo cabelo liso muito vermelho, o que faz com que eu me vire completamente, não sem cálculo e discrição apenas para contemplá-la. Uma pele branca, quase pálida, revela parcialmente um rosto fino que namora a tempestade como a se alimentar de frustrações, abraçando rancores, entretecida por dedos que colhem o que parece sobrar de duas pérolas azul-turqueza tristes — dolorosamente abandonada; como a esconder-se de si mesma. Ela nota meu movimento e rápido me olha sem ver-me, porém. E logo retorna ao seu silêncio de gestos, acarinhando mil desilusões. Da sua calma, ali incólume, pareceu-me que a melancolia era sua práxis quotidiana, pois parecia que ela ouvia, taciturna, um coro de decadentes; uma sonata da decepção. Algo me empurrou para o que seguiu sem que eu pensasse a respeito: "Oi... A sra. está precisando de alguma coisa", destaco entre pausas e com clareza me dirigindo a mulher. Ao se virar observei que um dos seus cenhos franziu levemente antes que sua mão esquerda cortasse o cabelo rubro e se fechasse na boca rosa com um: "não, obrigada". Dou conta então de que ela tem um perfume que estimula meu paladar, algo doce mas sem definição específica; informe. Recobro-me depois de devolver um "Ok" e me volto à saída, e quando encontro Silva, estiro a vista que percebe um olhar que se retira ligeiro de mim, esquivo, evitando uma confissão. Deduzo assim "interesse" pensando alto, mas logo concinto com o acaso e embarco para rumar de vez ao dilúvio. Quando a viatura passa pelo vidro que divisa-nos a vejo pela última vez, instante em que recebo um meio-sorriso, talvez declaratório de intenção, ou, ironia; sarcasmo feminil. Duas horas depois volto ao local e pergunto por ela no caixa, ao que o atendente diz-me, com segurança, não ter passado nenhuma mulher de cabelo vermelho por ali naquela noite — sobretudo enquanto estive por lá duas horas antes, ele ratifica, desconfiado da minha loucura. Será?  

Gabriel Leal 

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