Essa tal liberdade: meditações sobre o mal numa perspectiva cristã






É comum que na dor ou presença do mal, por causas "naturais" ou "humanas", questionemos a bondade de Deus, mais chocante ainda, é ter de acreditar nessa bondade ao sabermos que além de permitir o mal, esse Deus que é substancialmente amor, decretou aquilo que que nos fere, trabalhando providencial e soberanamente em cada detalhe da execução: do terremoto mais devastador ao câncer na criança. 

Sim, todas as coisas são predestinadas finalisticamente por Deus (inclusive o mal). Mas nem tudo é pré-causado, ou causado, diretamente por Deus na sequência multiforme de ações desencadeadas --- embora preserve Deus a direção dessas causas. Pois, especialmente nas ações más, Ele se serve de criaturas sem as manietar, que livremente ingressam nessa concorrência de causalidades --- uma a uma na esfera própria de impacto a fim de produzir teleologicamente o bem. 

Em última instância só existe mal-para-ou-em-nós temporalmente: que estamos no interior da história. Em Deus o mal sempre torna-se bem glorioso --- o que vale para àqueles que estão-em-Deus também; mas antecipo-me. 

Explico mais no que segue.

Quando um inocente é assassinado é Deus quem pré-destina essa morte, mais até, Ele é quem a determina assim, porém esse mesmo Deus não é, em hipótese alguma, autor desse ato abominável, dado que este, em si mesmo, direta e livremente, parte do coração desejante do homicida. 

O mal, assim, é oriundo desse desejo demasiadamente humano, que é, teologicamente falando, pecado radical (de raiz), em sua origem adâmica. Tal origem também certamente pré-destinada por Deus, embora não pré-causada, de sorte que Deus não deseja o mal nem o cria a partir dele, mas, determina a permissão dos desejos livres (e decerto tortos porém não menos livres) do coração do homem que concorrem em con-curso no eixo da Soberania de Deus. Isto é, ao encontro gracioso dos propósitos eternos. 

Ou seja, a morte do inocente concorre em sinergia causal para a Glória de Deus no sentido escatológico e trans-histórico de todas as coisas, enquanto condena, simultaneamente, mediante o juízo sobre a prática, o pecado realizado individualmente pelo homicida. 

A liberdade de quem pratica o mal e sua responsabilidade por tal não é perdida quando decretada por Deus de antemão: seria somente na hipótese de sê-la causada por Deus. Tudo porque, quem motiva à ação má é a vontade humana, e esta, embora condicionada a um fim determinado não é acionada por Deus para esse fim: quem aciona livremente é o homem, podendo até mesmo não fazê-lo (apenas logicamente) no âmbito de sua caus(ação) secundária.

Qualquer contingência, portanto, pode, a despeito de suas influências no caráter e ambiente ser vencida pela força de vontade do agente, que é livre quando elege o desejo que quer seguir. Esse desejo que planta o querer e semeia a vontade que dará origem ao ato quando confrontado com a necessidade imposta verticalmente pela soberania de Deus articula-se harmoniosamente --- sem que a liberdade do agente deixe de pertencer ao seu domínio, contudo. 

Não se trata de liberdade violada por Deus, mas de liberdade limitada à esfera de ação de agentes finitos, em suma, à agência de possibilidades pertencentes aos que agem: aquilo que em teologia dá-se o nome de livre agência

Deus não criou o mal, nem o cria continuamente como poderíamos constatar ao ver TV. Deus, antes da fundação do mundo, criou seres livres que decidiram agir para o mal (inicialmente os anjos não eleitos) no platô da intencionalidade limitada à perspectiva deles. 

A possibilidade ou previsibilidade do mal, assim como o decreto determinativo de sua permissão, em função do infinito platô divino, não exclui a agência esférica de ação dos praticantes muito menos a responsabilidade por toda maldade levada a cabo, sempre por desejo pessoal que é efetuado por decreto divino, mais até, que é operado primariamente por Deus nessa-e-na vontade maligna, todavia nunca, jamais, nela mesma, agindo. 

Lembre-se: autoria implica ação; co-autoria, caso fosse, é mediação ativa (sugestão/instigação) ou intelectual: ambas não estão sob o agir voluntarioso da natureza divina de um Deus que só faz o bem (na escala infinita de suas possiblidades infinitas a convergir sempre para o bem: sua própria Glória). Esse ponto refuta o argumento do Deus autor do mal. 

Por fim, quem escreve a narrativa dos personagens não é o mesmo a falar quando estes representam, podendo estes até, em tese, não narrá-lo, embora sempre, inexoravelmente... narrem o que está determinado (conforme cada linha do roteiro). 

Também a performance do ator não se confunde com a necessidade decretiva do autor do texto, antes, limitam-se mutuamente; cada qual com sua potência de agir. No caso relacional com Deus, a liberdade responsável do ator e a necessidade decretada pelo Autor (o próprio Deus) se harmonizam. Como isso é feito? Ninguém faz a mínima ideia: e esse mistério não anula a lógica das causalidades em correlação esferológica, apenas anuncia nossa finitude diante do infinito. 

Assim, em havendo Deus (e há), só Ele é livre na acepção pura do conceito --- nós, criaturas a nos mover no espaço esferológico contido no macroconjunto divino, agindo com nossa liberdade pessoal, devemos lidar sempre com uma liberdade limitada, e corrompida (pois verdadeiros autores do mal), já que não somos Deus.

Gabriel Leal 

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