O joker que habita em nós









É difícil argumentar em 2019 valendo-se de palavras como pecado, mandamento ou concupiscência, por exemplo. Seus usos implicam aquele foro restrito às questões religiosas, se muito, da consciência, portanto, pessoais. Daí eu ter você por herói se chegou até aqui, pois a regra consiste em fazer das questões que tais palavras evocam ocasião de controvérsia e desconforto, e assim que lidas, ouvidas ou ditas, causem enfado, chateação e despiste. Prometo, a bem do que será tratado, não falar de qualquer aporrinhação religiosa daqui pra frente.

Quero falar sobre Joker (Coringa), o filme que tem assombrado à crítica. Sobre Arthur Fleck (Joaquim Phoenix), o personagem central, com seus distúrbios neurológicos; com uma biografia de abusos e incompreensões; cultivado na rejeição; socializado no porão da desigualdade socioeconômica mais abissal e, dessa forma, destinado a uma vida de “pensamentos negativos” — como ele se autorrefere. 

O coringa é o retrato fiel da infelicidade estruturante e da paz impossível. Seu riso neurótico: a incapacidade própria da alegria. Sua deglutição salivar forçosa e doída: a incapacidade de adubar (umidificar) palavras para a troca. 

Por tudo isso, o que há de perturbador no personsagem é sua desafinação à melodia da vida, tornando qualquer satisfação ideada em dor real, e toda porta aberta à reciprocidade, do amor pela mãe até a quem mais admira depois dela (Murray), apenas o antepasso ao precipício — exatamente como se dá no filme. 

A linguagem do Joker é o idioma da desgraça, a fala de alguém tangido inexoravelmente no caminho da solidão — “você nunca me ouve, não é?”, diz em certa altura.

É interessante analisar que cansado da infelicidade constitutiva, o Coringa quer fazer da máscara a descontinuidade dessa indiferença brutal do mundo para consigo, como se apagado em seu interior ele pudesse ascender ao patamar da escuta, visto enfim, por que não, amado. Na indiferenciação total só assim ele poderia ser diferido, e o que era vocação (ser um famoso stand up), na verdade era a última manifestação razoável de um eu agônico em busca de salvação; felicidade. 

O chamado que ele tanto insiste ao longo do filme em fazer rir, portanto, é tão-somente o pedido de socorro a contrapelo da loucura, desde sempre nem tão escondida assim em toda sorte de comportamento montado na loucura. 

Note que nas vezes em que se lhe apresenta a ligação que pode imunizar sua dor, na experiência com a vizinha ou com a criança no ônibus, ao invés do sorriso é a careta nervosa que se esgarça, condoída meio luta meio entrega por não expressar-se como deveria pois domada inteiramente pela neurose. Quando Arthur mata os rapazes no metrô ocorre o ponto de viragem de toda a trama: a libertação trágica.

Dessa altura do filme, Arthur encontra o sentido do não-sentido que lhe constitui: o mal. Determinado a sofrer, ele encontra-se a si nesse modo de vida, numa espécie de homeostase existencial. É nessa perspectiva que ele mata sua mãe — uma das fontes primordiais de seu desajuste fundamental. É nessa perspectiva que ele mata Murray — outra fonte primordial de seu desamparo. 

O Coringa só pode oferecer o que tem e nessa troca ele pode ser reconhecido. “Se o que tenho, ou melhor, se o que sou, é loucura, que seja essa minha bandeira” — é o seu lema. 

O niilismo passa a ser sua divisa: daí os anonymous, os black box, o hacktivismo das redes sociais ser tão visceral ao nosso contemporâneo. E o motivo principal pelo qual tanto nos identificamos com esse Joker é nossa amizade estrutural com ele; nossa inclinação ao babélico de forma inata. Nossa parentela com Arthur é cervical, nossa tessitura é a mesma, e o que nos distingue, contudo, é a reciprocidade alimentada, nutrida, trocada nas relações constitutivas, desde o berço à carreira escolhida, do amor da mãe ao familiar (em sentido lato), afastando-nos do amargor que é veneno para a mente. 

Nossa sorte, por assim dizer, é encontrar quando falamos ouvidos que possam (nos) ouvir: corações para habitar — pois é impossível ser feliz sozinho. Isso é a dádiva que nos afasta da desrazão como saída exclusiva para o equlíbrio desequilibrado. Nossa diferença para o Joker é a afinação melódica com a vida dada por um terceiro elemento aos duetos da existência. Nada mais.

Termino dizendo que a loucura do Joker é o pecado (desculpa...) que nos habita, e por isso é tão lógico — e humano — compreendê-lo no alto de sua constituição subjetiva, pois Arthur é cada um de nós sem as drogas (lícitas e ilícitas) que nos vegetalizam. Sem, melhor dizendo, a dádiva (graça) dos bons encontros. 

Por tudo o que o Joker faz de absurdo podemos perceber o quão absurdo são os tempos em que vivemos, onde humanos agonizam nas esquinas sem que ninguém tenha olhos para vê-los; onde mulheres, quase em regra, corram risco de vida ao relacionarem-se com seus amores. Onde a verdade um dia foi clamada mas hoje já não pode ser escutada. 

Vá assistir-se no cinema, depois, procure investigar se o que lhe resta de felicidade é uma decisão pessoal tomada por você mesmo — ou se encontra, misteriosamente, na conexão dos tons entre si, numa regência invisível — esse terceiro elemento que a tudo une e assim possibilita tudo. Sem dádiva resta o trágico — por isso Nietzsche (o Joker do pensamento) é tão atual, e Cristo, tão esquecido como fonte última de sentido.


GL

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