Liturgias do Sol (no prelo)
Aquele
maçarico insuportável crispando minha nuca entre as folhas da tamarindo impediu
a gratificação ideal da sesta, e o elemento fundamental da cuiabania, no meu
recanto íntimo, não foi gozado como deveria.
Saí desse cochilo falhado cortando
impressões da lateral da Igreja que tranquilizavam meu ânimo combalido naquele
mormaço suarento. Desci as escadarias atrás do ponto de ônibus pela prainha, e
bem devagar, respiro alto, recobrando a objetividade que todo desempregado deve
manter para afastar espirais de pensamento, evitando assim não deprimir de vez.
Vejo logo um carrinho de garapa e minha boca espumeja infância. Os sábados na feira do porto entre pastéis molhados de fritura, nacos de
rapadura e o rito de passagem da cidade: a escolha do peixe que já inicia o
preparo servido no domingo em família. Passo a mão na carteira, e lembro do
vazio. Investigo por consciência os bolsos, cavo com as mãos, um a um; idem.
Passo reto, fronte alta. “André! Oh André!”, estaco e me volto. É Marcelo,
colega de faculdade, há quase um ano sumido sem deixar rastro, vivia com uma
avó que mal falava, Alzheimer agudo. Um aperto de mão estalado, um abraço
batido e estamos sentados na borda do que resta duma sombra toldada pelo
carrinho. Marcelo tem algo a dizer, está mais magro, face mais escanhoada que a
conhecida, o branco dos olhos dum vermelho hipertenso, sofrido, uma ou duas
meias-luas ao redor da boca seca sinalizando a idade apressada pela experiência.
“Que foi Marcelo, esse sumiço?”
“Consegui sair de casa só há duas semanas André, terrível cara”, responde
circunspecto.
Baixando os olhos, ele cortava cada palavra ao dizer que seis meses antes,
a convite de um sujeito que conheceu na fila do zé dog, rumou ao Pará em busca
de emprego numa escola, uma franquia que se abriria em Redenção, bom salário e
uma coordenação com vistas à sociedade futura. O mesmo sujeito ainda lhe
apresentara um pré-contrato assinado, registro em cartório e tudo, fotos, duas
ou três ligações, sem suspeitas. Além disso, Marcelo podia fazer contatos com
os Caiapó na área de Las Casas, amor antigo de pesquisa conciliado dentro dos
limites do município, sem prejuízo das funções. Feito o pé de meia, Marcelo, em
um ou dois anos quem sabe, poderia vir instalar a franquia apostilada no norte
de Mato Grosso, expandindo, até Cuiabá, não sem antes é claro, levar a avó,
assim que lá chegasse. “Adiamos a viagem duas vezes que iria ser feita de carro
até Redenção, e na terceira vez, me pegaram em casa ainda de madrugada;
seguimos com a caminhonete abarrotada de caixas de madeira, eu e mais dois
caras no passageiro que iriam trabalhar com mineração na região”. Marcelo
seguia pausado, avivado pela força da lembrança, e eu, nessa altura,
pressentindo o pior desfecho.
“Chegamos à cidade com dois dias
de viagem e só paramos pra abastecer em Redenção, e do posto mesmo liguei pro contato
lá que não atendia, até aí nada demais; e foi então que disseram pra gente
entrar no carro pois a viagem não tinha terminado e, com mais meia-hora em
estrada de chão, estávamos atravessando uma porteira, e daí minha cabeça já não
queria entender o que estava acontecendo, embora meu estômago gelado
denunciasse o engano e o tamanho da minha ingenuidade”. Marcelo cabeceia não
contendo um fio de lágrima que logo espalha com o dorso da mão, curtida de sol.
“Ao desembarcarmos as caixas, já rendidos por um grupo, muitas armas ali, fuzis,
escopeta e pistolas, tudo pra um puta esquema de segurança e grilagem de terra;
foi o fim. Os primeiros dias passei puxando cerca de arame farpado, fazendo
buraco, montando e desmontando acampamento dos jagunços, eu e os dois da
mineração, enganados como eu também, de dia trabalhando até a carne viva, às
vezes na coronhada, mordendo o que eles jogavam da marmita, tomando resto do
que sobrava das térmicas, e à noite, pés e mãos amarrados, de lacre isolante na
boca”.
“Que isso, Marcelo...”, perplexo, eu ruminava incrédulo enquanto ouvia.
“Porra André, foi terrível. Depois de praticamente seis meses, eu
consegui depois de um descuido dos jagunços ganhar a mata, passei dois dias
sendo perseguido pelos homens, com cachorro, com bala, com motocicleta pelo
trilheiro, comendo raiz, na chuva e naquele sol que te deixa louco, demorei
achar a rodovia, me perdi, peguei carona, desci, caminhei, peguei mais carona,
e com quatro dias eu cheguei a Vila Rica já em Mato Grosso; pensei em ir à
polícia mas desisti porque estava sem qualquer documento, continuei assim, pegando
carona, com o coração a milhão, com terror e já com dez dias de fuga eu vi os
prédios de Cuiabá, caí de joelhos, agradeci a Deus pela vida preservada.
Cheguei em casa numa terça-feira, minha avó sentada no quintal, minha única
ponte com o passado, André, meu Deus, ela ainda estava lá como eu a tinha deixado”.
Não acreditaria se não visse às mãos de Marcelo, puídas como uma luva
velha. Não eram calos o que saltava das juntas, mas dobras de pele endurecida e
torrada, e dos limites do couro cabeludo o vermelho tinha esculpido toda a face
como um laser tatuando ponto a ponto. Olhar para Marcelo era reconhecer o lado
vivo daquela história num primeiro momento só imaginada com impacto. De todo
modo, era um cara como eu, fodido pelas circunstâncias sociais de um 2016 sem
esperança, correndo atrás de emprego numa economia em derrocada e numa cidade
completamente destituída de possibilidades, saqueada por quadrilhas de
políticos e empresários que abriram dezenas de canteiros, pistas e viadutos, trens
europeus sob trilhos que nunca seriam entregues, mas pagos quadruplamente de
antemão. Bilhões no ralo insaciável da corrupção à brasileira, feito no velho
sistema de grandes obras com grandes eventos, a Copa de 2014, no caso
mato-grossense, a perdição vendida como panaceia. Prometeram um futuro para
caras como eu e Marcelo na virada do milênio entre créditos sem-fim, agora,
diante de perspectivas frustradas nos restava cair em iscas como essa, a cata
de eldorados em fazendas de trabalho escravo no alto Pará, e aos jovens do
interior, escovados pelos rumores do mato próximo, da grilagem e do tráfico,
sobrava outro golpe para a ilusão de crescimento, os EUA, a viagem muitas vezes
sem retorno.
Um suor frio escorria no meu rosto depois de silenciarmos um pouco, quis
pagar uma garapa pro Marcelo, mas não tinha um puto no bolso, e isso doía ainda
mais minha condição. Talvez Marcelo estivesse sentado no mesmo banco que eu,
minutos antes; talvez fosse a posição trocada ou a compaixão real por alguém tão
simples que ampliavam minha decepção, essa nulidade em amar para além da
expressão verbal, em poder ajudar ou dizer algo realmente fraterno. Apenas
cedia atenção. Por fim, disse sem jeito que alguém havia comentado que ele
tinha sumido, um ou outro colega pelo WhatsApp tinha lembrado mais de uma vez o
fato sem tecer maiores considerações sobre o boletim de ocorrência e as
investigações. Sua avó quase não falava e não sabia explicar o que se passava,
tampouco. Perguntei, depois de outro silêncio contrito, o que ele andava fazendo
por esses dias, e me respondeu que apesar de tudo estava feliz, tinha acabado
de conseguir um emprego num cursinho preparatório logo ali perto, iria lecionar
história regional.
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