o fogo e a fúria
O
inferno é um estado térmico. Quarenta e quatro graus é mais que um número no
termômetro, é um juízo, um detonador psicológico de angústia e opressão física.
Somado à fumaça, a consumação de florestas antes intocadas, terrenos urbanos
baldios, parques ecológicos, margens de rios e estradas, somos consumidos como
pavios no monturo, como lata enegrecida e torta arrastada pelo bafo do
meio-dia. Animais agonizam queimados entre as cinzas, o tamanduá arrasta-se
pedindo misericórdia até perder a força, o bugio pranteia sua cria, espremendo
os olhos com a mãozinha preta, sobre o galho que fumega. O gado magro mastiga
resignado cinza e areia brasa sobre o que um dia foi relva, o tuiuiú não sabe o
que fazer em cima do banco de areia do que um dia foi rio, e nesse gesto pede
pra morrer. As tocas agora são câmaras de gás onde o fogo estala galhos e
folhas, cremando vivos coelhos, tatus, raposas, toupeiras, marmotas e todos os
seus filhotes, num banquete pururuca debaixo da terra entre famílias abraçadas.
A sucuri está enrodilhada no cupinzeiro em chamas. O lobinho não sabe pra onde
ir sem seus pais, e lentamente seu pescocinho descarnado curva-se até que o
focinho encontre o seixo vermelho. O gavião circunda louco a copa queimada onde
havia um ninho. A noite vinga o dia com mais crueldade, levando junto ao vento
poente setas de morte na forma de fagulhas vivas incandescendo o luar. A coruja
então fecha os olhos e se eriça sobre a chapa quente do mourão. Há um grande
arco elétrico no céu sob imensas rajadas de solda de vento seco. Um demônio
vermelho diverte-se no interior do redemoinho de fogo, a despertar o berro das
cabras pressentidas do pior, a transtornar o sitiante até o meio do galinheiro
quando tenta salvar a criação. O nome dele é Lourenço. Ele irá ficar cinco dias
numa enfermaria, setenta por cento do corpo ardendo, sibilando frases sem
sentido até adormecer abruptamente depois de uma parada cardíaca. Enquanto
isso, o último casal de araquãs canta um choro de lamento, meio revolta meio
fúria. O dia amanhece com o céu rubro para repetir o ciclo eterno de juízo,
aumentando sua embriaguez agora no banquete entre convivas inconscientes.
Gabriel Leal
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